30 de julho de 2010

O grande Tema

O amor é o grande tema – completou Casé – sobre o qual se pode falar qualquer besteira porque nele cabe tudo. O amor é uma invenção dos humanos, Jacira. Assim como inventaram a lanterna, a espingarda, o shopping center, eles inventaram o amor. O professor Quelônius me disse que esse tipo de sentimento a dois não existia entre os humanos pré-históricos. Eles eram iguais a nós, répteis, às aves, aos peixes, aos outros mamíferos. Ele foi inventado para tentar organizar melhor a família dos humanos. Esses primatas criaram a idéia de que o amor é belo, é isso, é aquilo, e seus descendentes se viram na contingência de amar. Mesmo sem saber do que se trata. Não percebe, Jacira, que os humanos são prisioneiros de algo de que desconhecem o funcionamento?

Casé, o Jacaré que anda em pé. Carlos Eduardo Novaes.

22 de julho de 2010

Diálogo


(...) - Sou sua prisioneira, mas você quer que eu seja uma prisioneira feliz. Só posso pensar em duas possibilidades: ou pensava obter algum resgate, ou então faz parte de um bando ou qualquer coisa desse gênero.

- Já lhe disse que não era isso.

- Você sabe muito bem quem eu sou. Deve saber que o meu pai não é rico. Não creio, pois, que se trate de resgate.

Senti um arrepio ao ouvi-la pensar em voz alta.

- Só resta a possibilidade de se tratar de um caso sexual. É muito provável que me queira fazer alguma coisa.
Miranda observava-me.

O comentário chocara-me.

- Não é nada disso. Vai ver que lhe mostrarei todo o respeito. Não sou desses – redargui, bastante friamente.

- Então, você deve ser um louco – disse ela. – Um louco gentil e amável, claro. (...) Por que razão estou aqui?

- Queria que você fosse minha convidada.

- Convidada?

(...) Tinha o cabelo penteado uma comprida trança. Estava muito bela. Parecia corajosa também. Não sei bem por que, mas imaginei-a sentada nos meus joelhos, muito quieta, comigo a acariciar-lhe os cabelos, inteiramente soltos, como daquela vez que a vi assim.

De súbito, quase sem pensar, disse-lhe:

- Estou apaixonado por você. Estou quase louco de amor.

- Já compreendo tudo – disse ela, num tom de voz muito baixo e sério.

Depois disso, não me voltou a olhar.

Já sei que é antiquado fazer uma declaração dessas a uma mulher, e nunca tencionara faze-lo. Nos meus sonhos, olhávamo-nos sempre, ternamente e beijávamo-nos sem ser preciso falar. Um conhecido meu chamado Nobby disse-me, uma vez, que nuca se devia dizer a uma mulher que estamos apaixonados por ela, mesmo que o estivéssemos. E se fosse preciso, explicara-me ele, a melhor coisa seria fazê-lo de brincadeira, gracejando. O mais estúpido é que eu disse mil vezes a mim mesmo que nunca o faria e que deixaria a coisa acontecer normalmente. Mas sempre que estava a sua presença, eu ficava muito confuso e dizia coisas que não tencionava dizer.

John Fowles – O Colecionador.

16 de julho de 2010

Brevíssimas

        
       Imagem: http://migre.me/XuV4

Coração,
te condeno a este cárcere
sem direito a habeas corpus.
Descumpridor de acordos!

Julho de 2010


9 de julho de 2010

Que faço eu?




Mas é que fazer poesia já não adianta muito
Gritar ao pé do ouvido de um elefante
Ainda ouvindo música
Num i-Pod moderno...
Faça-me o favor!

Mas sou o rei das coisas superadas
Tenho a pretensão maluca de torná-las insuperáveis
Por via da insistência humana

Deus!
Que faço eu nesta vida?
Não tenho luxo algum em minha casa
Portanto não mereço a classificação gramsciana

Mas que faço eu?

É provável que seja egoísta
É provável que haja uma metafísica aqui que me impede
Quem é que sabe?

Eu, particularmente, não tenho autorização para me auto-definir personificadamente

Vida da pêga!
Coisa doida demais
A gente pensa e não faz
Que a vida continue...

- Fevereiro de 2010 -

3 de julho de 2010

Um Fantasma com Machado

Os meus fantasmas nem sempre me fazem apenas rabiscar em papéis ou digitar por aqui... às vezes me fazem também recitar coisas que li outrora... Quando não decoro, estes calhordas fazem questão de ficar recitando a coisa toda no meu ouvido...



Capítulo VIII: Razão contra sandice


http://colunistas.ig.com.br/paulocleto/2009/08/14/coisa-de-louco/

(...) Era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:

“La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.”

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.

— Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.

— Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
— Que mistério?

— De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.

— Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...

E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...


Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas.