24 de agosto de 2010

Nada


Ele estava sentado olhando pro nada, porque não tinha nada mais pra olhar naquele lugar, posto que ficava no meio do nada. É difícil de acreditar, mas em determinados momentos em que nada passa por nossa cabeça não há nada mais interessante do que o nada para contemplar. Ato filosófico. Pura e unicamente porque no nada só pode-se ver o nada. E o nada é fascinante.

Não fumava. Não comia. Não praticava ioga com os pés nas orelhas. Não mastigava um Trident de melancia nem revirava na boca uma balinha de maçã verde qualquer. Não cofiava o espaço ocupado há algumas horas por seu bigode, porque nada mais havia ali para cofiar – barbeara-se havia pouco. Não fazia nada. Só contemplava o nada. Pensando em nada e fazendo nada... E a filosofia desse ato ingenuamente sábio e completamente vazio era coisa que se encontrava apenas no nada.

Nada!

Ele olha o relógio. Passara três minutos. Um passarinho voou da cerca elétrica que estava desligada e, portanto nada causou ao corpo da ave. Um bando de periquitos silvestres e gritantes atravessou o céu avisando, pelos granares, que estavam passando. Isso já não existe em muitos lugares. E nós é que não temos nada!

Meio minuto mais! A bela moça se aproxima. O sorriso dela é no olhar. E no andar. E até mesmo no sorrir! Dá-lhe um peteleco e pergunta se não acha que está tarde demais para ele ficar ali na varanda. Dali a pouco escurecia e vinha sereno! Ele a olha com o nada restante do olhar, ora preenchido pelo reflexo da beleza da moça que poderia ser sua e diz:

“Que nada!”

Fevereiro de 2010

12 de agosto de 2010

O artista que sonhei


Chorei
Porque não posso ser
O artista que sonhei
Por quê?
Não sei...

Ofertaram-me de bandeja
A pobreza de espírito
Me deram, assim de graça
A possibilidade do nada
E eu, tonto, aceitei
Sem pestanejar
Sem derramar pranto
E, no entanto
Agora chorei
Porque sei
Que não serei
O artista que sonhei
Por quê? Não sei...

Mostraram-me o mundo
Numa perspectiva doce
Deram-me pão e água
Em troca de silêncio
Um lápis e uma caneta
Pra anotar as ordens certas
Que do alto a mim viria
E eu ouviria
Não tivesse ensurdecido
Pelo barulho do ser
Pode ser...
Não sei
Não sabendo, chorei
Porque ser não saberia
Por que ser não saberei?
Por que ser? Não saberei
Por quê? Ser não saberei
Não saberei
O poeta
O escriba
O cantor
O artista
Que sonhei...

2010

6 de agosto de 2010

Os passos da angústia



Imagem: http://migre.me/12HVa (Google Images)




Sonhar o sonho impossível,
Sofrer a angústia implacável,
Pisar onde os bravos não ousam,
Reparar o mal irreparável,
Amar um amor casto à distância,
Enfrentar o inimigo invencível,
Tentar quando as forças se esvaem,
Alcançar a estrela inatingível:
Essa é a minha busca.

(Miguel de Cervantes - Dom Quixote de La Mancha)


A angústia não me deixava
Caminhei, passos nervosos, pelos quatro cantos da casa
Mas a casa era muito pequena
E grandes eram meus passos
Sala, quartos, banheiros, cozinha
Tudo não era o bastante
Grandes eram meus passos
E grande era minha angústia

Virei a chave da porta da rua para a esquerda
Desci a maçaneta, ganhei a avenida vazia
Só minha!
A madrugada tem a mania de nos tornar donos de tudo
Exceto, talvez, de nós mesmos

Andei lojas, pátios e escadas
Calçadas, leitos indevidos de humanos sem recurso
E a rua era pequena
Meus passos, maiores ainda
E as ruas se multiplicando
E bairros e toda a cidade
Mas meus passos e minha angústia eram grandes demais

Cidade, estado, país
Continente...
Tudo a madrugada me dava
E me tirava de mim pra dar a outra pessoa
Mas meus passos, insaciáveis!
Tragavam o tudo e o nada!

- Oh! Passos, quem vos sustenta!?
- A angústia é quem sustenta
- Cansei, passos, volto a casa!
Refaço todo o caminho
E devolvo tudo, sem ônus, à madrugada

Viro a chave para a direita
Desço a maçaneta, empurro a porta
A forte luz do poste dá a impressão de que deixo algo pra traz
Mas não há interruptor algum para apagá-la

Torno a virar a chave à direita
Entro e penduro minha angústia no encosto da cadeira do computador
- Adeus, angústia! Quero dormir!

Durmo gostosamente
Meus passos, já não tão grandes, aquietam-se embaixo da coberta
Faz frio.
E durmo gostosamente

Abro os olhos e já é manhã
Sol reinando lá fora
E minha angústia me recebe com breakfast na cama...


Junho de 2010