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Sem Fazer Ideia by Fernando Lago
...De tarde, se anoitecer, tudo se acaba
E aí crio asas
E aí elas querem voar”
E aí crio asas
E aí elas querem voar”
(Karina Buhr)
Nos primeiros dias,
buscava sempre ocupar a cabeça. Várias coisas, trabalho principalmente.
Começava o dia pensando neste ou naquele documento, nesta ou naquela pasta,
nesta ou naquela duplicada. À rua, cumprimentava as pessoas com ar de gerente
de banco, de dono de importadora, de executive producer, alguém muito ocupado
para lembrar que estava sozinho.
Mas a noite era
terrível, a noite me matava, a noite não me dava a menor trégua. Demorava a
pegar no sono, tentava ler algum livro que já tivesse lido na minha
adolescência, mas não dava: a mocinha tinha a cor dos seus cabelos, ou o seu
sorriso ou as suas posições político-sociais. Não conseguia me prender a
programa nenhum de televisão, mesmo aqueles que não exigiam um mínimo de raciocínio
e atenção. Não havendo mais saída, tentava criar cenas, histórias fantásticas,
assaltos, guerras em países desconhecidos, aventuras extraordinárias que só
tinham uma coisa em comum: não evocavam a sua imagem.
Mas era impossível imaginar algo mais forte, mais surreal, mais impregnado e presente em mim do que a sua ausência. Quando desistia de tudo, me entregava à cama e me sentia puro. Não puro de limpo; puro de vazio. Nada me ajudava a esquecer que estava sem você. E a lacuna no seu lado da cama só aumentava a sensação.
Vinham os dias de folga
e a coisa piorava. Fazia de tudo pra acordar o mais tarde possível. Logo que
acordava, ia andar na rua, sair daquela casa, assombrada pelo meu próprio
fantasma solitário. E enquanto eu caminhava na Praça Antônio Nogueira, os
periquitos urbanos gralhavam sobre a minha cabeça, parecendo rir de mim dizendo:
“olha, que sujeito imbecil! Não era este mesmo que há pouco andava nesta mesma
praça, sentindo-se o dono do mundo? Que acreditava que tudo era doce e assim
seria pra sempre?” E eu apanhava uma pedra, ameaçava atirar nas aves e percebia
que o guarda municipal me encarava desconfiado.
À noite buscava alguma
festa, algum bar, qualquer coisa que me fizesse ficar na rua até tarde para não
ter que encarar o seu espaço na cama ocupado por nada, me encarando, rindo de
mim e repetindo a ladainha dos periquitos. Chegava em casa cansado, sem sono e
sem imaginação para criar histórias maravilhosas substitutivas à nossa própria,
que de repente era só minha de novo. Não havendo o que imaginar, sua imagem me
invadia, me assombrava, ria, chorava, praticava todas as injustiças e amores do
mundo num espaço de trinta minutos, até a resistência da vontade de chorar ser
vencida pelo sono.
Não éramos casados de
verdade e nem você fez questão de levar nenhum dos meus bens materiais. Não
houve advogados, nem litígios, nem qualquer tipo de processo judicial para
dividirmos o patrimônio. Mas você levou muito mais de mim do que imagina.
Porque você era o meu cofre mais seguro, onde eu guardava tudo que tinha de melhor.
Impossível disfarçar a minha carência dos bens que levou com você.
E fico assim,
imaginando histórias, jogando pedra em pássaros, a vontade de chorar: a sua
ausência faz de mim um menino. Daqueles bem dengosos.
No fim das contas, não
sei o que foi mais prejudicial. Se a minha imaginação do início, achando que
tudo seria eternamente doce, eternamente bonito, eternamente nós, sem que
ninguém desatasse. Ou se a minha falta de imaginação, para tentar me livrar da
sua imagem que, mesmo sem querer me perseguia em cada centímetro de qualquer
estrada em que eu me aventurasse.
Acho que dá empate...
Fernando Lago – Dezembro de 2011
Adorei sua postagem, muito verdadeiro, passei por algo muito parecido... Parabéns pelo blog
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