24 de julho de 2011

Trinta anos de clonagem




Da série “Crônicas do Futuro”

Os primeiros clones humanos foram apresentados oficialmente à sociedade há cerca de trinta anos. Demorou bastante até o conselho de ética da Organização Mundial de Saúde liberar a experiência. Alguns geneticistas apaixonados, no entanto, chegaram a tentar diversas vezes sem sucesso. Ou, se tiveram sucesso, nunca divulgaram. O fato é que esta semana completou-se trinta anos da oficialização, ocasião pela qual foi inaugurado no Rio de Janeiro o Museu Nacional do Clone, com fotos, filmes e relatos do processo que levou à liberação da clonagem reprodutiva humana.

O processo foi demorado, nós sabemos. Primeiro vieram as células tronco, depois a clonagem apenas para fins terapêuticos, como a reconstrução de órgãos a partir do DNA de pacientes com doenças degenerativas e depois de muitas discussões efervescentes entre defensores da ética, religiosos e cientistas revolucionários, acabou-se legalizando a nível mundial pelas Nações Unidas. Mas sabe-se que em diversos países a legislação já permitia, embora ainda não houvesse registros oficiais de experiências bem sucedidas.

Isso, obviamente, não foi bem recebido pelas religiões em geral. Mulçumanos protestaram, católicos e protestantes foram às ruas, o papa declarou-se contra num discurso histórico em que disse que os cientistas “brincavam de Deus”. Enfim, muito se filosofou sobre o caso.

As primeiras tentativas oficiais de clonagem humana foram registradas na Alemanha, pela Universidade de Berlim. Consta que os três primeiros clones já nasceram mortos, fato que foi encarado pelos religiosos como prova definitiva de que com a evolução dos estudos genéticos o homem poderia até clonar o corpo humano, mas só Deus era capaz de dar o sopro de vida a que chamamos de alma. Anos depois os primeiros clones vivos apareceram.

Segundo o livro do escritor e historiador Pero Guerra, circulou por essa época uma lenda bastante difundida no meio religioso mais popular. Segundo a lenda, Deus resolveu ser condescendente e distribuir a alma humana em mais de um recipiente, permitindo assim o nascimento dos clones. Ninguém explica o porquê dessa mudança repentina de ideia por parte do todo poderoso. Geneticistas contemporâneos explicam que os primeiros clones nasceram mortos por falha humana. O fato é que mesmo passados trinta anos as igrejas tradicionais ainda encaram a clonagem com maus olhos e proíbem os seus fiéis de terem clones. O que não os impede de tê-los. Nota-se que vários empresários católicos possuem clones que os substituem em diversas ocasiões.

De uma maneira ou de outra, os clones são realidade e hoje em dia quase todo mundo tem. E, sinceramente, está cada dia mais difícil viver sem um. Eu mesmo já tenho o meu, que, aliás, é quem vai apresentar essa crônica numa conferência, porque me sinto meio indisposto hoje...

Junho de 2011. Texto Publicado no Jornal Independente 

19 de julho de 2011

Verità




- Já parou pra reparar como tudo é tão perfeito nesse mundo, Vila?

- Eu já parei pra reparar como o seu otimismo é insuportavelmente sincero e por isso mesmo iludido.

- Vila você é um chato! Devia aproveitar mais a vida, olhar mais pro céu, pra natureza. Você só vê o lado ruim das coisas.

- É porque eu sou parte do tal lado ruim das coisas: ser humano. O homem destrói tudo o que vê. E por quê? Por dinheiro, riqueza, poder... a nível macro e a nível micro.

- Falta de Deus...

- Dodô, você sabe muito bem que eu não acredito em Deus!

- Pois sei. Mas Ele acredita em você.

- Pior ainda! Se ele acredita em mim aí é que acredito menos nele. Não dá pra confiar em quem acredita numa pessoa tão sem confiança como eu!

Dodô, diante da irredutibilidade do amigo, apenas riu. Vila riu também. Ambos sorrisos pernósticos, superiores. Como quem sabe uma verdade que o outro nunca saberia.

Julho de 2011

11 de julho de 2011

Foto Síntese



Manuseio este retrato com um único desejo: queria que os índios estivessem certos.

A única coisa que restou de você aqui em casa foi essa imagem aprisionada nesse pedaço de papel, com uma inscrição feita a caneta dourada, daquelas tintas que nunca se apagam: “eu te amo, e é pra sempre.” Preferia que a tinta da caneta sumisse primeiro. Preferia que essa lembrança não ficasse pra sempre impressa em minhas mãos. Preferia, mesmo, que o nosso amor não apagasse. Mas nosso amor não era tão resistente quanto a tinta daquela caneta, quanto esse papel kodak, quanto as tintas da impressora que revelou essa fotografia. Arre! Nosso amor não era mais forte que nada!

Lembro-me do dia que você me apareceu com essa foto. Era anterior a nós. Fora tirada numa dessas viagens que você sempre faz a algum lugar cheio de recursos naturais e que tantas vezes tentou me arrastar – em pouquíssimas conseguiu. Era tão engraçado! Você tentando me convencer que era preciso salvar o planeta. E eu pensava que a salvação do meu planeta estava naqueles dois globos de luz que brilhavam no seu olhar diante de mim. Pura física: eu girava ao seu redor, satélite natural. Você se irritava comigo de um jeito muito doce. Sempre achei que isso não era empecilho. Talvez minha ignorância com a causa ambiental fosse justamente o que mais te atraía. Você beijava minha ignorância, cheirava minha ignorância, fazia amor com ela. Estava sempre falando pra eu parar com os jogos eletrônicos, abandonar os meus dois celulares, mudar meus hábitos... Eu te chamava de louca. Eu te achava louca. E talvez sua loucura fosse justamente o que mais me atraía. Eu beijava sua loucura, cheirava sua loucura, fazia amor com ela.

Foi bem assim que você apareceu na minha vida. Eu já sabia que você era assim. Você também sabia que eu era assim. E nos desafiamos a querermo-nos. A foto, você disse, era um símbolo do nosso amor. Lembrança. E agora ela realmente é só isso: lembrança. Você, ágil como sempre é, empunhou a caneta que em segundos passou da bolsa para a mão e escreveu a frase na foto, eu acompanhando letra por letra. E  U  T  E  A  M  O...  

Quando você veio buscar suas coisas, eu me lembrei de escondê-la. Falei que a tinha perdido, que não sabia mais onde a tinha colocado, que talvez até tivesse ido pro lixo. Você se sentiu ofendida com o meu descaso, eu percebi, embora você tenha tentado ocultar tudo dizendo: “Ô amor, hein!”, com aquele seu sarcasmo que eu odiava amando...

Foi você que me disse uma vez, num dos seus acessos pernósticos de intelectualidade, que em algumas expedições a tribos indígenas os índios tinham medo de ser fotografados porque acreditavam que a câmera ia roubar as suas almas. Queria que eles estivessem certos. Teria aqui comigo a sua alma aprisionada... Embora seu corpo me deixe louco, há tantos outros corpos como o seu, esbeltos, bem feitos, cheios de curvas... Maravilhosa Geometria, calculada milimetricamente. Corpos os há aos montes. Mas sei que nunca acharei uma alma igual à sua... Queria roubar sua alma.

Julho de 2011