23 de dezembro de 2010

Fantasma Importado*




NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Lisbon Revisited (1923). Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).

*Às vezes nem meus fantasmas são suficientes. Importo dos outros, de Portugal, por exemplo. Eis aí o Pessoa: ótimo fornecedor de fatasmas.

15 de dezembro de 2010

Mundo



Mundo, mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
(Drummond)


Ah mundo!
Mundo, mundo!
Quisera, ao menos um segundo
Entender tuas demandas

Entender os teus dizeres
Compreender os desprazeres
E os desmandos que me mandas

Mundo, vida
Coisa estranha e abstrata
Com que trato me destratas
Com que prato me retratas
Na mesa dos que me querem
Devorar as carnes

Que mundo?
Que vida?
A serviço de quem me persegues?
A serviço de que?
Me entregues
Os teus segredos, mundo.

Caminho por suas ruas
Orbito por suas luas
E choro meu pranto, choro.
Arranco a minha lágrima
Que esteve sempre escondendo
Meu desespero profundo.

Fernando Lago
Feira de Santana, 11 de Dezembro de 2010

4 de dezembro de 2010

Contudo



Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.

Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos (Heterônimo de Fernando Pessoa)

24 de novembro de 2010

O Silêncio


O silêncio, este meu companheiro
Nunca me deixa só...
Carrega em si todas as coisas que queriam saber de mim
E até as que não queriam, mas quereriam se tivessem pista
Fidedigno: não as conta a ninguém...

Maio de 2010

16 de novembro de 2010

Inexplicação




Já não compreendo
O que me dizem todas as pessoas inexistentes
Que me cercam nessa vida

A vida é cheia de coisas inexplicáveis
Quanto mais as do coração!

Meu coração
Não é meu
Não é teu
É da vida
E a compreensão deste órgão
Que insiste em pulsar em tua função
É coisa que me escapa à clareza
Tu sabes

Não sei de coisas que não sejam complicadas
Ou sei delas e não as conheço
E no oceano das coisas complicadas e desconhecidas me afogo

Quem me dera
Quem me dera
Um coração que me salvasse
Me devolvesse o ar
Acabado nestas águas

Me ensina a mergulhar
Neste mar de coisas loucas
Sem ter que me afogar
Sem engolir dessa água salgada
De mar impuro

Me ensina, me ensina
Me ensina a velejar
E achar o jeito certo
De fazer a coisa errada

Me ensina me ensina
Me livrar da agonia
Me ensina a desaprender
Toda essa hegemonia
Me ensina a ser eu
Como você é você

Agosto de 2009

11 de novembro de 2010

Um tiquinho de Márquez





“A casa renascia de suas cinzas e eu navegava no amor de Delgadina com uma intensidade e uma felicidade que jamais conheci em minha vida anterior. Graças a ela enfrentei pela primeira vez meu ser natural enquanto transcorriam meus noventa anos. Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco. Virei outro. Tratei de reler os clássicos que me mandaram ler na adolescência, e não aguentei. Mergulhei nas letras românticas que tanto repudiei quando minha mãe quis -me forçar a ler e gostar, e através delas tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não foram os amores felizes e sim os contrariados. Quando meus gostos musicais entraram em crise me descobri atrasado e velho, e abri meu coração às delícias do acaso. Me pergunto como pude sucumbir nesta vertigem perpétua que eu mesmo provocava e temia. Flutuava entre nuvens erráticas e falava sozinho diante do espelho com a vã ilusão de averiguar quem sou. Era tal meu desvario, que em uma manifestação estudantil com pedras e garrafas tive que buscar forças na fraqueza para não me colocar na frente de todos com um letreiro que consagrasse minha verdade: Estou louco de amor.”

Gabriel Garcia Márquez – Memória de minhas putas tristes. Record, 2009.

19 de outubro de 2010

Estréia



Tem sido sempre dor
De agora em diante eu vou correr do amor
Pra ele não me alcançar
E nem me segurar
Neste mundinho seu

Os caminhos são múltiplos
Por que escolher só um?
Vou me filiar
Ao partido da doidice
Vou legitimar
Toda minha galhofice
E subir num palco televisivo
Representar um papel decisivo
E exibir meu rosto feio em zum

E um close pra assustar o mundo
E uma história de 30 segundos
Amor ensaiado
Amor encenado
Tudo perfeito
O duro é enfrentar a realidade desse jeito

Vou me despedindo
Faço reverência
E dirijo-me à primeira fila da platéia
Revolução!
Assistirei, ao vivo, à minha própria estréia!

Fernando Lago Santos – 16 de Outubro de 2010

Foto: Teatro da Paz, Belém, PA. Em http://www.flickriver.com/photos/macapuna/4293301855/

2 de outubro de 2010

Confissão de Carência




Foi mais ou menos assim.

Verifiquei o registro de chamadas no meu celular, intercalando os nomes e números com as situações em que foram armazenadas na memória do celular e na minha própria.

Faz tempo que não recebo uma ligação que não seja para tratar de reuniões, aulas, trabalho, ensaios, estudos da universidade... Faz tempo que não recebo SMS que não seja da própria operadora me mandando recarregar o celular, ou aqueles recadinhos ao estilo telegrama, automatizado com os anos: “Reunião 9:30”.

Observei com atenção os meus últimos e-mails, perdendo alguns instantes da minha vida lendo os títulos e remetentes das mensagens que ali apareceram.

Faz tempo que não recebo e-mails que não sejam atualizações irrelevantes de redes sociais, textos que se pretendem discussões político-filosóficas, moralismos fundamentalistas, piadas de loiras, de gaúcho, de papagaio, de padre e afins; anúncios de shows, convites a novas redes sociais para ter novas pessoas em novos perfis para novas não-realações. Comerciais de produtos eletrônicos, gente falando mal da Dilma, gente falando mal do Serra, gente dizendo que Tiririca não pode ser candidato, porque não estudou... Faz tempo.

Nas redes sociais, passei pelos recados e mensagens ainda restantes, nas páginas de comunicação, nos históricos de conversas históricas e cheias de história e estórias, relendo tudo com triste olhar...

Faz tempo que não recebo nada que não seja anúncios de eventos, pedidos de voto ou “convites” com apelos de amizade à participação de comunidades com nome esquisito. Faz tempo que não recebo um recado que não seja com vários quadradinhos com fotos de vários orkuteiros. Faz tempo que não recebo um recado só meu, dirijido especificamennte a Fernando Lago.

Saio ao quintal. Escuro. Noite. Procuro no céu por uma luz refletida, gritando em pensamento, exigindo a presença da lua.

Mas não é noite de lua... E, ainda que fosse, o céu está nublado. Faz tempo que não assisto a um espetáculo natural, obra de arte de Deus... Volto pra dentro, preciso de algo.

Confesso. Estou carente... Alguém pode, por favor, me abraçar?

Outubro de 2010

19 de setembro de 2010

Cíclico

                                                              Imagem: Travessa Literária


Grande bosta, ser poeta!
Juntar palavras e as dizer
Grande merda!
Não me têm levado a nada.

É o meio que eu acho de ser sincero
Mas não me têm acreditado
É o meio que eu acho de dizer “te amo”
Mas não me têm correspondido.

Cessem os elogios
Poesia é para poucos!
Dentre os quais não estou eu.
Sou egoísta, egocêntrico, egofóbico
Sou doido no sentido mais amplo da doidice.

Apaixono-me por todas que não estão dispostas
A apaixonar-se por mim
É ciclo
Sou um ser humano cíclico
Mais cíclico que a água

Estou cansado desta peça!
Dêem-me outro roteiro, por amor de Deus!
Dêem-me outro papel, pelo menos.
Cansei de ser o pseudo-bonzinho,
Que sempre se lasca no final.
E quantos finais já houve!

Sinto falta disso...
Queria ser o diretor
Queria escolher os papéis
Tudo correria bem, ao menos pra mim

Mas escolhi não escolher

Epopéia maldita
Meu verso e o dela
E o de todas as outras
Em nada nunca rimaram

É provável, esta coisa
É provável que eu só sirva pra vaguear
Que não há, pra mim, um par
É provável...
Esta mendicância de afeto
Esta carência de invasores...
Cíclico!


Ontem, após deitar e antes de fechar os olhos
(e nisto houve longuíssimo período)
Pude prever todo o meu futuro
E, do que vi, não gostei nada nada...

Sempre mais do mesmo.

 Julho de 2010

14 de setembro de 2010


Amanda ficou pensativa e falou como se estivesse sozinha na sala:

- Minha vida com o Marco foi uma tragédia. Os homens não podem nos aceitar como somos. Estão sempre querendo nos transformar. Quando conseguem, e a mulher se adapta, se modifica, aí os miseráveis entram em parafuso, ficam possessos, gostariam que ela não fosse mais aquilo em que a transformaram. O ideal seria que a mulher voltasse a ser exatamente como era no tempo em que se conheceram.

- Como é essa história?

- Esquece. Deixa pra lá. Os homens só dão aborrecimento, sabia? – Amanda soltou uma gargalhada. – Todas as mulheres que conheço adoram se chatear, têm um lado masoquista, só estão felizes quando estão infelizes. Eu também. Eu me incluo nesse grupo. Por que você está me olhando com essa cara de espanto?

Leonardo riu:

- Estou me lembrando daquele personagem do romance de Roberto de Aquino, aquele professor de matemática que vivia de porre e dizia a toda hora que, numa equação, num problema, a mulher é sempre a incógnita. Quem se envolve com uma entra um labirinto do qual nunca mais conseguirá sair. Você já ouviu falar na linguagem dos pássaros?

- Que diabo é isso?

- É uma dessas teorias orientais. De acordo com a linguagem dos pássaros, os relacionamentos entre homem e mulher se processam inevitavelmente em sete etapas: busca, encontro, alegria, deslumbramento, dependência, demência e desenlace. Desenlace, no caso, quer dizer a morte. Quem não tiver consciência dessas sete fases e se deixar envolver termina se estrepando.

- Babaquice, Léo. Babaquice.”

NASCIMENTO, Esdras do. A Dança dos Desejos, opus 13. A Girafa, 2006. 

24 de agosto de 2010

Nada


Ele estava sentado olhando pro nada, porque não tinha nada mais pra olhar naquele lugar, posto que ficava no meio do nada. É difícil de acreditar, mas em determinados momentos em que nada passa por nossa cabeça não há nada mais interessante do que o nada para contemplar. Ato filosófico. Pura e unicamente porque no nada só pode-se ver o nada. E o nada é fascinante.

Não fumava. Não comia. Não praticava ioga com os pés nas orelhas. Não mastigava um Trident de melancia nem revirava na boca uma balinha de maçã verde qualquer. Não cofiava o espaço ocupado há algumas horas por seu bigode, porque nada mais havia ali para cofiar – barbeara-se havia pouco. Não fazia nada. Só contemplava o nada. Pensando em nada e fazendo nada... E a filosofia desse ato ingenuamente sábio e completamente vazio era coisa que se encontrava apenas no nada.

Nada!

Ele olha o relógio. Passara três minutos. Um passarinho voou da cerca elétrica que estava desligada e, portanto nada causou ao corpo da ave. Um bando de periquitos silvestres e gritantes atravessou o céu avisando, pelos granares, que estavam passando. Isso já não existe em muitos lugares. E nós é que não temos nada!

Meio minuto mais! A bela moça se aproxima. O sorriso dela é no olhar. E no andar. E até mesmo no sorrir! Dá-lhe um peteleco e pergunta se não acha que está tarde demais para ele ficar ali na varanda. Dali a pouco escurecia e vinha sereno! Ele a olha com o nada restante do olhar, ora preenchido pelo reflexo da beleza da moça que poderia ser sua e diz:

“Que nada!”

Fevereiro de 2010

12 de agosto de 2010

O artista que sonhei


Chorei
Porque não posso ser
O artista que sonhei
Por quê?
Não sei...

Ofertaram-me de bandeja
A pobreza de espírito
Me deram, assim de graça
A possibilidade do nada
E eu, tonto, aceitei
Sem pestanejar
Sem derramar pranto
E, no entanto
Agora chorei
Porque sei
Que não serei
O artista que sonhei
Por quê? Não sei...

Mostraram-me o mundo
Numa perspectiva doce
Deram-me pão e água
Em troca de silêncio
Um lápis e uma caneta
Pra anotar as ordens certas
Que do alto a mim viria
E eu ouviria
Não tivesse ensurdecido
Pelo barulho do ser
Pode ser...
Não sei
Não sabendo, chorei
Porque ser não saberia
Por que ser não saberei?
Por que ser? Não saberei
Por quê? Ser não saberei
Não saberei
O poeta
O escriba
O cantor
O artista
Que sonhei...

2010

6 de agosto de 2010

Os passos da angústia



Imagem: http://migre.me/12HVa (Google Images)




Sonhar o sonho impossível,
Sofrer a angústia implacável,
Pisar onde os bravos não ousam,
Reparar o mal irreparável,
Amar um amor casto à distância,
Enfrentar o inimigo invencível,
Tentar quando as forças se esvaem,
Alcançar a estrela inatingível:
Essa é a minha busca.

(Miguel de Cervantes - Dom Quixote de La Mancha)


A angústia não me deixava
Caminhei, passos nervosos, pelos quatro cantos da casa
Mas a casa era muito pequena
E grandes eram meus passos
Sala, quartos, banheiros, cozinha
Tudo não era o bastante
Grandes eram meus passos
E grande era minha angústia

Virei a chave da porta da rua para a esquerda
Desci a maçaneta, ganhei a avenida vazia
Só minha!
A madrugada tem a mania de nos tornar donos de tudo
Exceto, talvez, de nós mesmos

Andei lojas, pátios e escadas
Calçadas, leitos indevidos de humanos sem recurso
E a rua era pequena
Meus passos, maiores ainda
E as ruas se multiplicando
E bairros e toda a cidade
Mas meus passos e minha angústia eram grandes demais

Cidade, estado, país
Continente...
Tudo a madrugada me dava
E me tirava de mim pra dar a outra pessoa
Mas meus passos, insaciáveis!
Tragavam o tudo e o nada!

- Oh! Passos, quem vos sustenta!?
- A angústia é quem sustenta
- Cansei, passos, volto a casa!
Refaço todo o caminho
E devolvo tudo, sem ônus, à madrugada

Viro a chave para a direita
Desço a maçaneta, empurro a porta
A forte luz do poste dá a impressão de que deixo algo pra traz
Mas não há interruptor algum para apagá-la

Torno a virar a chave à direita
Entro e penduro minha angústia no encosto da cadeira do computador
- Adeus, angústia! Quero dormir!

Durmo gostosamente
Meus passos, já não tão grandes, aquietam-se embaixo da coberta
Faz frio.
E durmo gostosamente

Abro os olhos e já é manhã
Sol reinando lá fora
E minha angústia me recebe com breakfast na cama...


Junho de 2010

30 de julho de 2010

O grande Tema

O amor é o grande tema – completou Casé – sobre o qual se pode falar qualquer besteira porque nele cabe tudo. O amor é uma invenção dos humanos, Jacira. Assim como inventaram a lanterna, a espingarda, o shopping center, eles inventaram o amor. O professor Quelônius me disse que esse tipo de sentimento a dois não existia entre os humanos pré-históricos. Eles eram iguais a nós, répteis, às aves, aos peixes, aos outros mamíferos. Ele foi inventado para tentar organizar melhor a família dos humanos. Esses primatas criaram a idéia de que o amor é belo, é isso, é aquilo, e seus descendentes se viram na contingência de amar. Mesmo sem saber do que se trata. Não percebe, Jacira, que os humanos são prisioneiros de algo de que desconhecem o funcionamento?

Casé, o Jacaré que anda em pé. Carlos Eduardo Novaes.

22 de julho de 2010

Diálogo


(...) - Sou sua prisioneira, mas você quer que eu seja uma prisioneira feliz. Só posso pensar em duas possibilidades: ou pensava obter algum resgate, ou então faz parte de um bando ou qualquer coisa desse gênero.

- Já lhe disse que não era isso.

- Você sabe muito bem quem eu sou. Deve saber que o meu pai não é rico. Não creio, pois, que se trate de resgate.

Senti um arrepio ao ouvi-la pensar em voz alta.

- Só resta a possibilidade de se tratar de um caso sexual. É muito provável que me queira fazer alguma coisa.
Miranda observava-me.

O comentário chocara-me.

- Não é nada disso. Vai ver que lhe mostrarei todo o respeito. Não sou desses – redargui, bastante friamente.

- Então, você deve ser um louco – disse ela. – Um louco gentil e amável, claro. (...) Por que razão estou aqui?

- Queria que você fosse minha convidada.

- Convidada?

(...) Tinha o cabelo penteado uma comprida trança. Estava muito bela. Parecia corajosa também. Não sei bem por que, mas imaginei-a sentada nos meus joelhos, muito quieta, comigo a acariciar-lhe os cabelos, inteiramente soltos, como daquela vez que a vi assim.

De súbito, quase sem pensar, disse-lhe:

- Estou apaixonado por você. Estou quase louco de amor.

- Já compreendo tudo – disse ela, num tom de voz muito baixo e sério.

Depois disso, não me voltou a olhar.

Já sei que é antiquado fazer uma declaração dessas a uma mulher, e nunca tencionara faze-lo. Nos meus sonhos, olhávamo-nos sempre, ternamente e beijávamo-nos sem ser preciso falar. Um conhecido meu chamado Nobby disse-me, uma vez, que nuca se devia dizer a uma mulher que estamos apaixonados por ela, mesmo que o estivéssemos. E se fosse preciso, explicara-me ele, a melhor coisa seria fazê-lo de brincadeira, gracejando. O mais estúpido é que eu disse mil vezes a mim mesmo que nunca o faria e que deixaria a coisa acontecer normalmente. Mas sempre que estava a sua presença, eu ficava muito confuso e dizia coisas que não tencionava dizer.

John Fowles – O Colecionador.

16 de julho de 2010

Brevíssimas

        
       Imagem: http://migre.me/XuV4

Coração,
te condeno a este cárcere
sem direito a habeas corpus.
Descumpridor de acordos!

Julho de 2010


9 de julho de 2010

Que faço eu?




Mas é que fazer poesia já não adianta muito
Gritar ao pé do ouvido de um elefante
Ainda ouvindo música
Num i-Pod moderno...
Faça-me o favor!

Mas sou o rei das coisas superadas
Tenho a pretensão maluca de torná-las insuperáveis
Por via da insistência humana

Deus!
Que faço eu nesta vida?
Não tenho luxo algum em minha casa
Portanto não mereço a classificação gramsciana

Mas que faço eu?

É provável que seja egoísta
É provável que haja uma metafísica aqui que me impede
Quem é que sabe?

Eu, particularmente, não tenho autorização para me auto-definir personificadamente

Vida da pêga!
Coisa doida demais
A gente pensa e não faz
Que a vida continue...

- Fevereiro de 2010 -

3 de julho de 2010

Um Fantasma com Machado

Os meus fantasmas nem sempre me fazem apenas rabiscar em papéis ou digitar por aqui... às vezes me fazem também recitar coisas que li outrora... Quando não decoro, estes calhordas fazem questão de ficar recitando a coisa toda no meu ouvido...



Capítulo VIII: Razão contra sandice


http://colunistas.ig.com.br/paulocleto/2009/08/14/coisa-de-louco/

(...) Era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:

“La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.”

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.

— Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.

— Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
— Que mistério?

— De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.

— Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...

E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...


Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas.

30 de junho de 2010

18 de Dezembro




Tenho pensado muito sobre algumas coisas que tenho escrito aqui e, muito mais, sobre o que tenho pensado ao escrevê-las, sem escrever. Consegue entender-me? É que por trás destes meus pensamentos aqui escritos existem tantos outros que não são escritos e que ficam sendo ruminados pela 'boca' de meu cérebro[1]... São pensamentos prenhes de pensamentos, prenhes de pensamentos, prenhes de pensamentos, que são um ciclo infinito. O que tenho pensado sobre esses pensamentos – o que me enche a mente ao escrevê-los – é justamente um medo de que minhas conclusões tiradas - infundadas - através deles estejam extremamente erradas. Esse medo é provavelmente correto... Deus! Deus! Sou um poço de dúvidas!



[1] Perdoem-me a metáfora mal empregada.

Dezembro de 2007

* De um dos muitos rabiscos meus, de momentos de aulas não muito atraentes. Pra vocês verem como são ousados os meus fantasmas, esses crápulas. Me assombram até em momentos de aula! 



28 de junho de 2010

Palavra...




Por algum motivo minha palavra aparentemente perdeu o valor. Não sei exatamente qual o motivo, mas isso é péssimo, porque era a única coisa que me restava de valor. Se é verdade o que penso, melhor parar. De vez. Caminhar a frente, mas sem nada. Nem ninguém.

De 27 de Junho de 2010, com algumas edições.




Crédito da imagem: http://poesiadiaria.wordpress.com/2009/04/03/o-peso-da-palavra/

26 de junho de 2010

Este meu medo

Este meu medo criado em cativeiro é que me faz cativo. Medo de um bocado de coisas que não se revelam... invisíveis. Ou não se revelam ou são compostas de cores específicas, para as quais eu possuo um raro daltonismo e não consigo enxergar. Talvez seja este o segredo do poder de invisibilidade dos meus fantasmas, criaturas extraordinariamente loucas. É... talvez seja isso. O universo dos amores é uma coisa complicada... Formato complicado, iluminação complicada. Ou enxergamos tudo ou enxergamos nada. Ou às vezes pensamos estar enxergando tudo e, ao cabo de algum tempo ou tempo nenhum, desabam-se os castelos... É o que mais me assusta nesta coisa toda. Porque parece que a história de minha vida é um ciclo. Sempre a mesma coisa, sempre os mesmos erros, sempre as mesmas características, sempre a mesma novela... Só mudam os personagens. E a organização das cenas... Síndrome da Malhação.

Junho de 2010

QUANDO NADA DIZ COISA NENHUMA A NINGUÉM

Na nítida expressão do seu olhar

Não vejo mais que desprezo

E em teus dentes brancos

O debochado riso debochante

Diz-me que eu sou nada


Mais nada dizer do nada

Se não que ele é nada

Há frases que dizem isso

E outras que dizem mais

Mas nada servem ao nada


E este nada

(ninguém, coisa nenhuma)

Ser mitologicamente real

Desfaz-se do mitológico

E passa a ser só real

Um nada pluri-real

Visto e não enxergado

De uma voz que não se escuta

Mas incomoda os ouvidos da surdidão


Nunca vi nada causar tanto alvoroço!


23 de Outubro de 2009

24 de junho de 2010

Enxurrada de declarações, indagações, enrolações...

De que me vale pensar que tudo podia ser assim ou assado?

Agora já estou aprisionado

Quem virá me libertar?


De que me vale acreditar em mundo e reinos encantados

Me parece mesmo tudo acabado

O melhor mesmo é me resignar


Que se dane a métrica!

Sai daqui com teus modelos!

Rimo quando quero e se quero

Ao menos aqui eu quero ser livre.


Quanto à vida

Ah, vida!

Liberdade é um sonho!


Anistia, anistia!

Eu imploro anistia!

Não se atreva a negar

Quero me anistiar

Quero mesmo me exilar

De bagagem ir morar

Neste mundo da poesia


14 de Junho de 2006


23 de junho de 2010

Avant Premiére

Eis que está lançado o blog. Eis que está lançado à sorte. Eis que está lançada a sorte...

Alea jacta est!



http://letras.terra.com.br/raul-seixas/68420/


Os meus fantasmas
São incríveis
Fantásticos, extraordinários
Se fantasiam de Al Capone
Nas noites que tenho medo
De gangsters
Abusam de minha
Tendência mística
Sempre que possível
Os meus fantasmas tornaram
Minha solidão em vício
E minha solução
Em Status Quo

Faça, Fuce, Force
Raul Seixas. Documento, 1998.