29 de dezembro de 2011

Um minuto

 Imagem: Narciso. De Michelangelo Merisi da Caravaggio. 


Eu que me aguente comigo
E com os comigos de mim...
(Álvaro de Campos)

Dê-me um minuto
Para que eu me convença
De que essa imaterialidade nos levará
A algo de real nesta vida

Deixe-me falar comigo
Metido em minha cadeira de canto de sala
E tentar pregar a mim a confiança nas trivialidades
De Deus ou do destino

Crê que não será fácil
Conheço-me muito e pouco
E a um tempo sei que não acreditarei de primeira
Nas minhas próprias palavras

Que dizer-me?
Não tenho o dom da oratória
Que argumentos lançar-me ao rosto?

Não sei ser persuasivo nem comigo mesmo
E tenho pra mim tão pouca consideração
Que provavelmente darei um muxoxo
Com o olhar em outra coisa mais importante
Que eu...

E convencido de que não me convenço
Resignado de que não me agrado
Baixarei os olhos e sairei calado
Ou me direi verdades que já conheço
Ou me atracarei comigo diante dos olhos surpresos
Daqueles que não são eu

Sou imprevisível.

Sei que na minha infância
– períodos de beleza diária
Amava-me como a mim mesmo
E embora brigasse comigo
As pazes já não tardavam

Agora que não sei mais quem sou
Ou o que sou
E ando nas ruas catando fragmentos do que fui um dia
Retalhos do que hei de ser
Agora quem sabe me reconstrua
Se conseguir convencer-me de que valho a pena....

Dezembro de 2011

15 de dezembro de 2011

“E a falta de imaginação me fez lembrar de você...



 Sem Fazer Ideia by Fernando Lago

...De tarde, se anoitecer, tudo se acaba
E aí crio asas
E aí elas querem voar”
(Karina Buhr)


Nos primeiros dias, buscava sempre ocupar a cabeça. Várias coisas, trabalho principalmente. Começava o dia pensando neste ou naquele documento, nesta ou naquela pasta, nesta ou naquela duplicada. À rua, cumprimentava as pessoas com ar de gerente de banco, de dono de importadora, de executive producer, alguém muito ocupado para lembrar que estava sozinho.

Mas a noite era terrível, a noite me matava, a noite não me dava a menor trégua. Demorava a pegar no sono, tentava ler algum livro que já tivesse lido na minha adolescência, mas não dava: a mocinha tinha a cor dos seus cabelos, ou o seu sorriso ou as suas posições político-sociais. Não conseguia me prender a programa nenhum de televisão, mesmo aqueles que não exigiam um mínimo de raciocínio e atenção. Não havendo mais saída, tentava criar cenas, histórias fantásticas, assaltos, guerras em países desconhecidos, aventuras extraordinárias que só tinham uma coisa em comum: não evocavam a sua imagem.


Mas era impossível imaginar algo mais forte, mais surreal, mais impregnado e presente em mim do que a sua ausência. Quando desistia de tudo, me entregava à cama e me sentia puro. Não puro de limpo; puro de vazio. Nada me ajudava a esquecer que estava sem você. E a lacuna no seu lado da cama só aumentava a sensação.

Vinham os dias de folga e a coisa piorava. Fazia de tudo pra acordar o mais tarde possível. Logo que acordava, ia andar na rua, sair daquela casa, assombrada pelo meu próprio fantasma solitário. E enquanto eu caminhava na Praça Antônio Nogueira, os periquitos urbanos gralhavam sobre a minha cabeça, parecendo rir de mim dizendo: “olha, que sujeito imbecil! Não era este mesmo que há pouco andava nesta mesma praça, sentindo-se o dono do mundo? Que acreditava que tudo era doce e assim seria pra sempre?” E eu apanhava uma pedra, ameaçava atirar nas aves e percebia que o guarda municipal me encarava desconfiado.

À noite buscava alguma festa, algum bar, qualquer coisa que me fizesse ficar na rua até tarde para não ter que encarar o seu espaço na cama ocupado por nada, me encarando, rindo de mim e repetindo a ladainha dos periquitos. Chegava em casa cansado, sem sono e sem imaginação para criar histórias maravilhosas substitutivas à nossa própria, que de repente era só minha de novo. Não havendo o que imaginar, sua imagem me invadia, me assombrava, ria, chorava, praticava todas as injustiças e amores do mundo num espaço de trinta minutos, até a resistência da vontade de chorar ser vencida pelo sono.

Não éramos casados de verdade e nem você fez questão de levar nenhum dos meus bens materiais. Não houve advogados, nem litígios, nem qualquer tipo de processo judicial para dividirmos o patrimônio. Mas você levou muito mais de mim do que imagina. Porque você era o meu cofre mais seguro, onde eu guardava tudo que tinha de melhor. Impossível disfarçar a minha carência dos bens que levou com você.

E fico assim, imaginando histórias, jogando pedra em pássaros, a vontade de chorar: a sua ausência faz de mim um menino. Daqueles bem dengosos.

No fim das contas, não sei o que foi mais prejudicial. Se a minha imaginação do início, achando que tudo seria eternamente doce, eternamente bonito, eternamente nós, sem que ninguém desatasse. Ou se a minha falta de imaginação, para tentar me livrar da sua imagem que, mesmo sem querer me perseguia em cada centímetro de qualquer estrada em que eu me aventurasse.


Acho que dá empate...

Fernando Lago – Dezembro de 2011

26 de novembro de 2011

Souvenir




Parecia ser possível ver nós dois ali dentro, de mãos dadas e sentados num banquinho sob a varanda, vendo a chuva cair lentamente, poeticamente...

Em verdade o efeito do globo d’água que há anos eu guardava na estante fazia parecer que nevava, embora neve fosse algo muito raro, talvez até inexistente naquele lugar. Mas a réplica era perfeita da pracinha onde ficava o hotel em que passamos aquelas férias. E, creio que por isso mesmo, as lembranças que aquele pequeno objeto trazia em mim eram impressionantemente fieis.

Você tocava o meu rosto e dizia que aqueles dias de férias eram os melhores da sua vida. Eu, machão, não dizia nada, apenas sorria. E você se contentava com esse sorriso, interpretava-o, traduzia-o nas mais sinceras juras de amor que lhe poderiam ser dadas. E interpretava bem, porque era exatamente o que se passava pela minha cabeça: você era minha, naquelas férias e em todos os dias da minha vida. E ninguém iria te tirar de mim. Você estava em mim, eu em você; e nenhuma intervenção cirúrgica nos separaria. Era o que o meu sorriso tirava do meu silêncio para submeter à sua tradução.

Uma pena estar errado. Uma pena as coisas não correrem da forma como planejamos. Uma pena viver sob a pena de sentir só pena. Teríamos dado certo, tenho certeza. E por que não demos?

Olho pra esse souvenir, única coisa que me restou daquelas férias, e fico pensando nessas coisas... E se a gente realmente cumprisse o que nos prometemos antes de cada um entrar no seu portão de embarque? E se tornássemos a nos ver espontaneamente, descontroladamente, sem precisar de férias e hotel para isso?

Relaxamos conosco, esquecemo-nos, embora lembremo-nos de nós todos os dias. Fizemos vista grossa aos apelos do coração e não quisemos saber da gente, mesmo sabendo que sabemos muito de nós. Nas raras vezes que nos comunicamos à distância depois daquelas férias, não nos compreendemos, e tivemos a impressão de sermos outros.

Sabemos que não sabemos explicar o porquê desse nosso afastamento. Não é simplesmente a geografia, você sabe. O afastamento geográfico até então não interferia. Mas de repente, a gente meio que se apagou, e mesmo sendo um do outro, perdemo-nos de nós.

Agora fico eu aqui, sentado na sala de estar, tentando desvendar mistérios que nem a NASA saberia explicar...

O fato é que este é o único lugar em que me posso abrigar nestas ocasiões. Porque é como se, naquela lembrancinha esférica, cristalina e cheia de água ali da estante, eu pudesse enxergar-nos sem nenhum problema, sem nenhuma dúvida, sem nenhum impedimento. Eternos. Como foram eternas aquelas férias de inverno. Pena que a nossa eternidade durou tão pouco...

Fernando Lago – Novembro de 2011

15 de novembro de 2011

Lounge




Sempre fomos vulcão, desde o primeiro momento que resolvemos mudar o nosso status de relacionamento perante a indiferente sociedade que nos cerca. Nunca fui modesto, Júlia, você sabe. Por isso me sinto inteiramente à vontade para dizer que a maior parte de nossas brigas começou por culpa de seus ciúmes. Como no caso da carta da Kênia, por exemplo: minha amiga de infância, Júlia! E você ralhou comigo porque ela me tratava por “meu primeiro namoradinho”... Entrou em erupção emocional, eu também; e saímos queimando tudo o que vinha pela frente. Éramos assim, destrutivos, devastadores em nossas brigas quase sempre torpes.

Mas no dia em que você me deixou falando sozinho e saiu correndo para chorar em um canto, sei que foi o saldo de todas as coisas pelas quais te fiz passar... Só agora, aqui isolado com as persianas abertas e vendo o céu sem lua, reconheço o quão tonto fui durante cada minuto em que estivemos juntos.

Naquele mesmo dia procurei sua irmã. Confesso isso sem pudor, porque você já conhece a história, com certeza. Apenas não a tinha ouvido de mim. Provavelmente nem vai ouvir. O máximo que te ofereço são estas letras, que ainda vacilo te entregar.

Mas procurei a sua irmã. Procurei e descobri por sua própria boca que ela ia casar. Doeu. Só que a dor que eu senti naquele dia não foi essa dor que chamam de amor. Foi de ego mortalmente ferido. Ela tinha me dito coisas tão bonitas, tão realizáveis. Tantas promessas! Entregou-se tão doce e despejada, como se não existisse Hélio, como se não existisse você... Me desculpe, mas é esta a verdade: ela foi tão minha naquele dia que cheguei a pensar que poderia ser pra sempre...

Ego! Só aí entendi que a minha atração por Taty sempre foi uma busca de satisfação para o meu Ego. Não me estranhe, sabemos que nunca estudei psicologia e que essas informações são extremamente perigosas, mas não vejo outra forma de dizer isso.

Totalmente diferente, foi o que senti há alguns dias atrás, quando eu passava pela Rua Seis e ouvi uma doce voz cantando: “como vai você eu preciso saber da sua vida...” e resolvi parar para ouvir um pouco.
Vergonha! Tantos anos juntos e eu nunca tinha te visto cantar, salvo alguns murmúrios que cessavam logo quando se percebiam observados.

Sim. Naquele bar, era a sua voz. E o seu rosto bonito, e o seu corpo esbelto e os cabelos levemente amorenados, que te diferenciavam da Taty... Era você. Toda você! E aquele vestido preto com detalhes prateados fui eu que te dei... Eu.

“Essa mulher é minha...” Murmurei, num canto escuso do bar. E esperei pacientemente até que você terminasse de distribuir seus encantos, que os casais apaixonados ou em crise ou os amigos de breja sequer percebiam. Trabalho ingrato!

Fui eu que puxei as palmas naquele dia. Num ambiente como aquele, não sei se você já tinha sido aplaudida antes. Mas foram palmas sinceras, não as puxei porque era você. Senti-me realmente tocado e inspirado a puxá-las, encantado como nunca tinha ficado antes, por uma pessoa que há pouco tempo estava ao meu lado. Minha! Sim, era minha! Aquela cantora elegante era minha!

No momento em que você ia descendo do palco improvisado eu ia me preparando para levantar da mesinha no canto escondido do bar. E tinha tanta certeza que você era minha que já fui com o beijo aprontado nos lábios e o discurso ensaiado para dizer: “Me perdoa, eu sou muito tonto, muito tonto, muito tonto...”

Mas antes que eu pudesse me aproximar, percebi suas mãos nas mãos de outro sujeito. Coração gelado, pernas bambeando, os olhos simulando cisco no olho... Sua mão em outra mão que não a minha. Percebi que era profecia o que você cantava na música a pouco, naquele banquinho de bar, e que já tinha se cumprido: eu não fui; e o tempo afastou nós dois.

11 de Novembro de 2011

28 de outubro de 2011

Paradoxo



Talvez afinal
Palavras sejam apenas palavras
Principalmente as lindas
Principalmente as de amor

Talvez afinal
Eu seja só um cara comum na rua
Numa manhã gelada de domingo
Poetizando por não ter nada melhor pra fazer

Que maneira elegante de chorar minhas mazelas!
Que maneira elegante de reconhecer minha derrota!
Paradoxal

Talvez afinal
Uma manhã de junho
Num domingo excessivamente gelado
Seja a ocasião perfeita para paradoxos...

Junho de 2009

6 de outubro de 2011

Palavras ao vento



Jogo esta carta escrita em papel leve, com tinta suave como sua pele, na esperança de que o vento a faça chegar até você.

Não sei bem o que aconteceu da última vez que nos vimos, Lila, não compreendi direito. Ou talvez até tenha entendido, mas uma parte do meu cérebro tenha se recusado a memorizar... Não sei. Não entendo muito bem de biologia, você sabe.

Sei que desde que você se foi sem dizer tchau, adivinhei que você demoraria a voltar. Ou talvez não voltasse mais...

Sei que te cansei com minhas cobranças. Sei que muitas vezes falei coisas terríveis sobre você. Mas, Lila, a cabeça dos homens funciona assim. E você sabe, Lila, por mais diferente que você me queira, eu sou igual. Igual a todos os homens. Insensível, ciumento, possessivo; e essa bolha de ciúmes que fui deixando encher a cada partida sua explodiu naquele dia em que eu insinuei que você devia ficar presa a mim.

É, Lila... Sou um homem. Vê? Quando nos encontramos pela primeira vez eu não passava de um menino. Mas um menino que aprendeu com você a arte de amar. Mas confesso, Lila, que aquela coisa de liberdade que eu disse que tinha aprendido a respeitar foi puro fingimento. Se você fizesse uma prova de verificação perceberia que eu não teria rendimento nenhum. Fingi pra não te perder. Mas a cada partida sua eu ficava com medo de não te ver nunca mais. Você não era um passarinho, Lila. Eu não podia te engaiolar. Mas era esta a vontade que eu tinha cada vez que te via saltar daquele jeito e se misturar ao horizonte, para voltar depois cheia de saudades.

Nunca te contei, mas muitas vezes me peguei imaginando se não haveria por aí outras cidades pequenas, com outros edifícios pequenos, com outros meninos tristes que te encontrariam no fim de outras tardes para que você contasse todas as coisas que me conta, ou mesmo outras coisas. Essa possibilidade me enchia de ódio de você, Lila. Mas passava rápido.

Quando você demorava de chegar esses pensamentos vinham com tanta força que eu dizia para mim mesmo: “hoje vou ser frio com ela, ela não merece minha simpatia o tempo todo.” Mas quando você surgia com esse sorriso que só você tem, prevalecia a vontade de meus pés, que antes de eu pensar qualquer coisa, corriam para eu te abraçar e lhe acariciar esses longos cabelos.

Confesso que ainda vou ao prédio perto da escola, Lila. Pra que que eu ia mentir pra você? Vou lá muitas vezes, tentar reviver nossas palestras particulares que o som dos carros da avenida me fazem lembrar. Duas ou três vezes tive a esperança de que você pousaria ali, sem mais nem menos e me diria: “Quanto tempo, senti saudades!” mas não creio que isso vá acontecer...

O mundo é tão grande, Lila! E você o fez tão pequeno. Do seu tamanho. Agora que você saiu, o espaço não cabe ninguém além de você.

Não faço a mínima ideia de como te encontrar. Você é livre, vai aonde quiser: você pode! Mas despejo todas as minhas esperanças no vento que, se é seu amigo como você diz que é, vai achar um jeito de levar às suas mãos este escrito tão saudoso.

Lila, menina que voa, essa carta não é um apelo para que você venha e more comigo para sempre, sem poder voar pelo mundo, como dei a entender da última vez. Não estou querendo outra vez te prender na minha gaiola, Lila. Só estou confessando e reconhecendo que há muito, muito tempo eu já estou preso na sua.

Seu,
Ricardo


Fernando Lago – Setembro de 2011

25 de setembro de 2011

Locomotiva

Imagem: São João Del Rei, MG, no site Olhares 


Estive lembrando coisas passadas
Do tempo em que o tempo passava
Como uma locomotiva
Hoje, veloz trem bala!

Quem dera
 – pobre de mim!
Pudesse exigir do tempo
Todas as coisas de volta

Sorrisos não são engarrafáveis
Nunca vi abraços em conserva
Beijos não cabem em caixas
Por maiores que elas sejam

Pena...
Queria guardar tudo isso no meu armário
Não me importaria que bagunçasse ainda mais o meu quarto
Queria relíquias suas
Relíquias não abstratas
Coisas não materiais

Um retrato a gente toca
Mas é puramente abstrato
Concreto é amor, carinho
A gente não toca, mas sente
Existe mais que a matéria
E não há coisa mais linda pra se guardar da vida

A gente podia refazer a história
Escrever com letra dourada
Comprar folhas novas, em branco
E começar tudo de novo

É sonho
Divagação

Nunca deu pra guardar nada
E sei que nunca daria

Mas há palavras
Palavras sim
- misto de abstração e concretude
Estas estão bem guardadas

Mas palavras são só palavras...

Reli essa poesia toda
E, creio, devo rasgá-la
Nunca vi nada mais piegas que eu...


Janeiro de 2011

12 de setembro de 2011

A Cabana dos meus sonhos


Quando a olhei disse: é ela
Porém ela não concordou
Achou que nossos caminhos
Cruzaram-se por engano
Um mal planejado dos céus
Um lapso do destino

Quem é que sabe?
Eu, que sempre soube apenas de mim
Agora nem isso posso!

Ando por uma avenida expressa
Semáforos não me detêm
Não sei onde vou chegar
Se é que ainda haja lugares para chegar
A cidade me é estranha
O mundo me é estranho
Eu me sou estranho

Lá, na cabana dos meus sonhos
Tinha um quarto reservado
Para escrevermos poesias
Tinha um divã na varanda
Para consultarmos a lua
E criaríamos sonhos
De engorda no quintal

Mas sonho dentro de sonho
Não pode dar coisa que presta
E o mundo girou
- É só o que sabe fazer
Não sei para que lado gira
Não sei a que velocidade
Não sei de nada
Porque me isentei de saber
Saber é descabido
Se não te tenho aqui perto

Na cabana dos meus sonhos
Ainda tem um quarto
Que anda desocupado
Esperando, vazio, por alguém que o habite...

Janeiro de 2011

8 de setembro de 2011

Música, divina música!


(Millôr Fernandes)


Imagem: Orkugifs.com



Tanto duvidaram dele, da teoria daquele jovem gênio musical, que ele resolveu provar pra si mesmo, empiricamente, a teoria de que não existem animais selvagens. Que os animais são tão ou mais sensíveis do que os seres humanos. E que são sensíveis sobretudo ao envolvimento da música, quando esta é competentemente interpretada.

Por isso, uma noite, esgueirou-se sozinho pra dentro do Jardim Zoológico da cidade e, silenciosamente, se aproximou da jaula dos orangotangos. Começou a tocar baixinho, bem suave, a sua magnífica flauta doce, ao mesmo tempo em que abria a porta da jaula. Os macacões quase que não pestanejaram. Se moveram devagarinho, fascinados, apenas pra se aproximar mais do músico e do som.

O músico continuou as volutas de sua fantasia musical enquanto abria a jaula dos leões. Os leões, também hipnotizados, foram saindo, pé ante pé, com o respeito que só têm os grandes aficionados da música. E assim a flauta continuou soando no meio da noite, mágica e sedutora, enquanto o gênio ia abrindo jaula após jaula e os animais o acompanhavam, definitivamente seduzidos, como ele previra.

Uma lua enorme, de prata e ouro, iluminava os jacarés, elefantes, cobras, onças, tudo quanto é animal de Deus ali reunido, envolvidos na sinfonia improvisada no meio das árvores. Até que o músico, sempre tocando, abriu a última jaula do último animal - um tigre.
Que, mal viu a porta aberta, saltou sobre ele, engolindo músico e música - e flauta doce de quebra. Os bichos todos deram um oh! de consternação. A onça, chocada, exprimiu o espanto e a revolta de todos:

- Mas, tigre, era um músico estupendo, uma música sublime! Por que você fez isso?

E o tigre, colocando as patas em concha nas orelhas, perguntou:

- Ahn? O quê, o quê? Fala mais alto, pô!

MORAL: OS ANIMAIS TAMBÉM TÊM DEFICIÊNCIAS HUMANAS.

3 de setembro de 2011

Nuit



Caminhando sob a lua de janeiro
O luar iluminando os edifícios
Suspirou, ai meu Deus como é difícil
Eu sentir-me um homem por inteiro

Tantas metades de mim espalhadas no mundo
Gotas de lágrimas soltas pelos quatro ventos, efeito colateral
Tanta saudade sem fim e esse pranto profundo
Tanta viagem na margem do lago do Lago, tão marginal

Mal
Que mal?
Há mal?
Ou eu mesmo sou o tal?
Nau
Que sal
Nos meus olhos molhados de tanto viajar no seu espaço sideral!

Janeiro de 2011

25 de agosto de 2011

Porquês



Lembra de mim?
Sou essa criança que brinca ali
Naquela foto empoeirada
Que ninguém mais olha

Olha,
Que engraçado!
Temos o mesmo sorriso desengonçado
Quando brincamos de imaginar

Você cresceu
Pensando que eu morreria
Que seu intelecto me apagaria
Que eu nunca mais ia aparecer

Engano seu
Eu só tenho um sono bem pesado
E quando você está todo ensimesmado
Sou eu, naquela idade dos porquês.

Julho de 2011

18 de agosto de 2011

Metrô Noturno



 Fulana by Fernando Lago  (Lula Queiroga - Tem Juízo mas não usa)


Como se a fulana me levasse
um braço, um nome, um rim...


Te odiei naquela primavera, você sabe disso. Você sabia previamente que eu iria te odiar. Te odiei com a mesma força com que te amei nos dias anteriores. Até na noite anterior. Até o último minuto daquela fogueira que acendêramos em nossos corpos juntos no hotel plaza, como dois feixes de lenha seca. Um fogo intenso, destruidor, que apagou-se por si mesmo tão logo atingiu seu ápice. Mas eu, você sabia, não me apaguei por inteiro: passei o dia em brasas.

Não sei exatamente por que te odiei, sei que te odiei. Não sei se o que pesou mais foi você ter ido embora, ou se foi o fato de fazê-lo sem me avisar, alegando que queria me poupar. Não sei se fiquei mais com raiva por causa da sua burrice de achar que me pouparia indo embora sem falar nada comigo, deixando apenas uma carta que eu acharia sabe lá deus quando. Não sei se fiquei ferido no orgulho por você achar que eu precisaria ser poupado de alguma coisa. Simplesmente odiei. Mas suspeito que o principal combustível do meu ódio fora a noite no hotel plaza, tão perfeita! Eu fazendo cálculos na cabeça pro futuro, todos incluindo você – e você simplesmente se despedindo, sem que eu sequer soubesse.

Era cerca de oito horas quando o celular tocou. Era a Marília perguntando se eu estava legal. Eu, ainda em brasas, respondi entusiasmado que “tudo ótimo” e ela achou estranho, perguntando se eu bebera ou fumara algo pra esquecer a dor. Mas eu não sabia de que dor que ela falava.

- Então vocês não brigaram?

- Não, estamos bem... ontem mesmo nós... enfim, que história é essa, Marília?

- É que fiquei sabendo que ela tá no rumo de se enfiar num metrô daqui a pouquinho...

Até hoje não sei bem se a Marília fez isso na inocência ou queria mesmo que eu fosse atrás de você. Você deve se lembrar de que ela foi uma das grandes incentivadoras no início disso que chamamos de nosso romance.

Corri feito um louco com minha moto em direção à estação. Furei sinal vermelho, passei em corredores, cortei sei lá quantos carros, quase atropelei uma criança... Cheguei afoito, corri, saltei a roleta sob protestos do guarda. Ainda deu tempo de gritar seu nome e você virou-se surpresa. Queria ter fotografado o seu rosto naquela hora... Lindamente surpreendido, lindamente culpado.

Azar. A porta do metrô abriu-se e, como todo mundo apinhado atrás da linha amarela, você entrou afobada, eu de cá, olhando desolado... Você conseguiu sentar-se ao lado da janela e acenou pra mim, com lágrimas que até hoje não sei se foram verdadeiras, mas que apagaram o último vestígio avermelhado de brasa que restara em mim.

- Não vá... – falei, inaudível, o que se lia no meu rosto.

- A carta, leia a carta que deixei na sua gaveta!

O trem em movimento. E sua mão acenando por detrás do vidro parecia levar um pedaço muito grande de mim...

Agosto de 2011

12 de agosto de 2011

Amparo



Saúdo a todo poeta
Que tem uma paixão secreta
E aprende a versificar
Só para anunciar
De uma maneira discreta
Sem o tudo revelar

Eu também já fiz poesia
Cheia de melancolia
Lembrando, pra esquecer
De amores que deixei nascer
Vendo grande estripulia
No meu coração crescer

Por outro lado, já fiz
Poema muito feliz
Pensando que era amado
Me julgando agraciado
Por ter criado raiz
No amor bem aventurado

Mas ah, como isso é raro!
Pois em geral me amparo
Na ponta da minha caneta
Como manco em muleta
Como o cachorro no faro
Como astrônomo na luneta

Ó, Senhor, como pena!
O poeta que encena
Essa peça, esse drama
Que lhe põe o peito em chama
Que nunca se amena
Quando o coração ama


05 de Agosto de 2011

4 de agosto de 2011

Démence



Tenho muitos amores
Milhares de paixões tenho
Lutando entre si
Nesta luta do contrário
(negação da negação)
Não há um só vencedor
Só eu saio perdedor

Caminho nesta avenida
Carros atropelando gentes
Gentes atropelando subgentes
E alheios a tudo andam
Longe
Aqueles que deviam ver

Quem me dera
Minha lua
Madrinha desta rua
Pudesse eu ser normal
Com inquietações normais
Com normal inteligência
Mas não posso

A normalidade em mim é a loucura
A vida em mim é lúgubre
E anda cantarolando óperas nos ouvidos das moças tristes
Para fazê-las rir da minha cara

Não vejo a menor graça!
Ou meu espelho está quebrado?

Espelho, espelho meu!
Existirá nesse mundo
Homem besta como eu?

É besta mesmo!
Ao espelho não se pergunta o óbvio
À caneta se pergunta tudo
Se quiser ouvir sinceridade
É arrogante, mas franca

- Pena moderna minha
Responde-me com clareza
Amar-me-á alguém?
- Fernando, isso não sei! Sou caneta e não oráculo!
Use essa sua cabeça de pesquisador de araque
Pra saber desse pormenor

É mesmo desaforada!
Deixo-a de lado
Melhor deixar tudo mais
Respirar fundo, cochilar
Esperar que a vida passe
Dia após dia
Noite após noite
Que se vá a inquietação
Quero ao menos hoje descansar!

 Outubro de 2009


24 de julho de 2011

Trinta anos de clonagem




Da série “Crônicas do Futuro”

Os primeiros clones humanos foram apresentados oficialmente à sociedade há cerca de trinta anos. Demorou bastante até o conselho de ética da Organização Mundial de Saúde liberar a experiência. Alguns geneticistas apaixonados, no entanto, chegaram a tentar diversas vezes sem sucesso. Ou, se tiveram sucesso, nunca divulgaram. O fato é que esta semana completou-se trinta anos da oficialização, ocasião pela qual foi inaugurado no Rio de Janeiro o Museu Nacional do Clone, com fotos, filmes e relatos do processo que levou à liberação da clonagem reprodutiva humana.

O processo foi demorado, nós sabemos. Primeiro vieram as células tronco, depois a clonagem apenas para fins terapêuticos, como a reconstrução de órgãos a partir do DNA de pacientes com doenças degenerativas e depois de muitas discussões efervescentes entre defensores da ética, religiosos e cientistas revolucionários, acabou-se legalizando a nível mundial pelas Nações Unidas. Mas sabe-se que em diversos países a legislação já permitia, embora ainda não houvesse registros oficiais de experiências bem sucedidas.

Isso, obviamente, não foi bem recebido pelas religiões em geral. Mulçumanos protestaram, católicos e protestantes foram às ruas, o papa declarou-se contra num discurso histórico em que disse que os cientistas “brincavam de Deus”. Enfim, muito se filosofou sobre o caso.

As primeiras tentativas oficiais de clonagem humana foram registradas na Alemanha, pela Universidade de Berlim. Consta que os três primeiros clones já nasceram mortos, fato que foi encarado pelos religiosos como prova definitiva de que com a evolução dos estudos genéticos o homem poderia até clonar o corpo humano, mas só Deus era capaz de dar o sopro de vida a que chamamos de alma. Anos depois os primeiros clones vivos apareceram.

Segundo o livro do escritor e historiador Pero Guerra, circulou por essa época uma lenda bastante difundida no meio religioso mais popular. Segundo a lenda, Deus resolveu ser condescendente e distribuir a alma humana em mais de um recipiente, permitindo assim o nascimento dos clones. Ninguém explica o porquê dessa mudança repentina de ideia por parte do todo poderoso. Geneticistas contemporâneos explicam que os primeiros clones nasceram mortos por falha humana. O fato é que mesmo passados trinta anos as igrejas tradicionais ainda encaram a clonagem com maus olhos e proíbem os seus fiéis de terem clones. O que não os impede de tê-los. Nota-se que vários empresários católicos possuem clones que os substituem em diversas ocasiões.

De uma maneira ou de outra, os clones são realidade e hoje em dia quase todo mundo tem. E, sinceramente, está cada dia mais difícil viver sem um. Eu mesmo já tenho o meu, que, aliás, é quem vai apresentar essa crônica numa conferência, porque me sinto meio indisposto hoje...

Junho de 2011. Texto Publicado no Jornal Independente 

19 de julho de 2011

Verità




- Já parou pra reparar como tudo é tão perfeito nesse mundo, Vila?

- Eu já parei pra reparar como o seu otimismo é insuportavelmente sincero e por isso mesmo iludido.

- Vila você é um chato! Devia aproveitar mais a vida, olhar mais pro céu, pra natureza. Você só vê o lado ruim das coisas.

- É porque eu sou parte do tal lado ruim das coisas: ser humano. O homem destrói tudo o que vê. E por quê? Por dinheiro, riqueza, poder... a nível macro e a nível micro.

- Falta de Deus...

- Dodô, você sabe muito bem que eu não acredito em Deus!

- Pois sei. Mas Ele acredita em você.

- Pior ainda! Se ele acredita em mim aí é que acredito menos nele. Não dá pra confiar em quem acredita numa pessoa tão sem confiança como eu!

Dodô, diante da irredutibilidade do amigo, apenas riu. Vila riu também. Ambos sorrisos pernósticos, superiores. Como quem sabe uma verdade que o outro nunca saberia.

Julho de 2011

11 de julho de 2011

Foto Síntese



Manuseio este retrato com um único desejo: queria que os índios estivessem certos.

A única coisa que restou de você aqui em casa foi essa imagem aprisionada nesse pedaço de papel, com uma inscrição feita a caneta dourada, daquelas tintas que nunca se apagam: “eu te amo, e é pra sempre.” Preferia que a tinta da caneta sumisse primeiro. Preferia que essa lembrança não ficasse pra sempre impressa em minhas mãos. Preferia, mesmo, que o nosso amor não apagasse. Mas nosso amor não era tão resistente quanto a tinta daquela caneta, quanto esse papel kodak, quanto as tintas da impressora que revelou essa fotografia. Arre! Nosso amor não era mais forte que nada!

Lembro-me do dia que você me apareceu com essa foto. Era anterior a nós. Fora tirada numa dessas viagens que você sempre faz a algum lugar cheio de recursos naturais e que tantas vezes tentou me arrastar – em pouquíssimas conseguiu. Era tão engraçado! Você tentando me convencer que era preciso salvar o planeta. E eu pensava que a salvação do meu planeta estava naqueles dois globos de luz que brilhavam no seu olhar diante de mim. Pura física: eu girava ao seu redor, satélite natural. Você se irritava comigo de um jeito muito doce. Sempre achei que isso não era empecilho. Talvez minha ignorância com a causa ambiental fosse justamente o que mais te atraía. Você beijava minha ignorância, cheirava minha ignorância, fazia amor com ela. Estava sempre falando pra eu parar com os jogos eletrônicos, abandonar os meus dois celulares, mudar meus hábitos... Eu te chamava de louca. Eu te achava louca. E talvez sua loucura fosse justamente o que mais me atraía. Eu beijava sua loucura, cheirava sua loucura, fazia amor com ela.

Foi bem assim que você apareceu na minha vida. Eu já sabia que você era assim. Você também sabia que eu era assim. E nos desafiamos a querermo-nos. A foto, você disse, era um símbolo do nosso amor. Lembrança. E agora ela realmente é só isso: lembrança. Você, ágil como sempre é, empunhou a caneta que em segundos passou da bolsa para a mão e escreveu a frase na foto, eu acompanhando letra por letra. E  U  T  E  A  M  O...  

Quando você veio buscar suas coisas, eu me lembrei de escondê-la. Falei que a tinha perdido, que não sabia mais onde a tinha colocado, que talvez até tivesse ido pro lixo. Você se sentiu ofendida com o meu descaso, eu percebi, embora você tenha tentado ocultar tudo dizendo: “Ô amor, hein!”, com aquele seu sarcasmo que eu odiava amando...

Foi você que me disse uma vez, num dos seus acessos pernósticos de intelectualidade, que em algumas expedições a tribos indígenas os índios tinham medo de ser fotografados porque acreditavam que a câmera ia roubar as suas almas. Queria que eles estivessem certos. Teria aqui comigo a sua alma aprisionada... Embora seu corpo me deixe louco, há tantos outros corpos como o seu, esbeltos, bem feitos, cheios de curvas... Maravilhosa Geometria, calculada milimetricamente. Corpos os há aos montes. Mas sei que nunca acharei uma alma igual à sua... Queria roubar sua alma.

Julho de 2011

10 de junho de 2011

Confronto



Não tão feios quanto se pintam
Apareceram diante de mim
Dançando maracatu
Desferindo golpes de kung fu
Desanuviando minha vida
Tintim por tintim

Surgiram assim, do nada,
E o nada surgira de mim
Empunhando cada qual uma espada
Com cabo de marfim
E lâminas manchadas
Com sangue de alguma coisa viva
Tirada de minhas entranhas
Cirurgicamente
Quando eu olhava para os lados do sem fim

Em saltos semimortais
Postaram-se num semicírculo
Olhares semicerrados
E eu, semianalfabeto
Na linguagem que eles sussurram
Perdi-me em mim mesmo
Na fuga da perseguição
Que eles me empregaram
Correndo no meu encalço
E eu, tranquilismo falso,
Em desesperada marcha
Comendo meus pés o espaço

No meio do caminho
Em perfeito desalinho
Admirou-se-me a imagem
De um homem-passarinho
Que assoviava um mantra,
Espreguiçado no ninho

“Menino alagado, cabeça de vento,
Nariz tarraxado
Tu toma tento!
Porque se não enfrentas
Eu que não enfrento!”

Passarinho, passarinho
Verdades que tu cantastes...
Virei-me e voltei ao caminho
Poeira levantada pelos meus perseguidores
Poeira levantada pelos cascos nus do meu cavalo manco
Poeira levantada pela pensamentez da minha cabeça turva

E encarei
Frente a frente,
Descido dos meus tamancos,
Todos os meus demônios.

Maio de 2011

24 de maio de 2011

Dividendo



Eu me lembro bem. Você estava sentada do meu lado no banquinho da estação rodoviária e olhava para minhas pernas que balançavam impacientes. Calados, porque não havia nada pra falar, ficamos olhando os carros entrando e saindo da estação.

Tudo tinha acontecido muito rápido. De repente você tinha se tornado parte essencial da minha constituição física e psíquica. Era como se fôssemos um, mesmo em lugares diferentes: como se tivéssemos a capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo, um através do outro. E quando eu dizia ao mundo que você era minha, não o fazia por força de expressão: eu realmente acreditava nisso, queria isso, te enxergava assim.

Mas, de repente, você ia embora, e eu entendi que você era livre e que nós não éramos um. Éramos uma soma que, hoje entendo, fora calculada erroneamente.

Levantei e fui buscar um sorvete. Tínhamos chegado cedo demais, ainda faltava muito pro seu ônibus partir. Tomamos o sorvete todo, ainda calados. Volta e meia você tentava rir, pra animar, mas não tinha argumentos pra defender o seu sorriso. Eu continuava quieto, mais frio que o sorvete que tomávamos.

Perguntei pela trocentésima vez se aquilo era mesmo necessário, se não havia nada que eu pudesse fazer para você desistir daquela viagem. Você disse que era a sua carreira, a sua vida... Eu diria que minha carreira era ser seu e que minha vida era você, que sem você ela acabaria... Mas você sabe que eu nunca fui ligado em sentimentalismos exacerbados... Exceto agora, que a o desgaste da vida e o medo da morte me obrigam a ceder às angústias da alma.

 - Um dia eu volto...

Disse isso passando a mão pelo meu rosto. Sinceridade total e visível no ato, mas nenhuma nas palavras. Mesmo você, por mais que tentasse, não demonstrava ter fé nelas. Eu estava te perdendo. E era pra sempre.

Levantei-me nervoso, pondo as mãos nos bolsos da jaqueta e caminhei até a grade que separava o saguão das plataformas de embarque. Você me seguiu e instalou-se do meu lado, quase colada à minha costela, de onde – dizem as escrituras – O Criador teria extraído a mulher. Sem palavras, me abraçou forte, se aconchegando cada vez mais em meus braços. Em poucos instantes éramos um de novo, unificados pelo abraço.

O autofalante anunciou a saída do seu ônibus, mas eu, ao invés de folgar os braços, te apertei mais ainda contra o meu peito, prisioneira do meu abraço.

- O que é isso?

- Por favor, não vá...

- Tenho que ir...

- Fica, não me deixa!

- Desculpa... Eu te amo.

E me desarmou com um beijo, libertando-se pouco a pouco dos meus braços, das minhas mãos, de mim...

Quando você entrou no ônibus, eu não era eu... não totalmente. Me sentia muito você, talvez mais você do que eu. E me vi entrando no ônibus, disfarçado de você: era uma pedaço de mim, me acenando pela janela, para nunca mais...

Não sei por quanto tempo durei em você, talvez anos, talvez meses, semanas, dias... Talvez você me tenha jogado num rio qualquer, na primeira ponte em que o ônibus passou. Talvez tenha me levado na viajem, deixado a um quanto qualquer em seu apartamento novo para, num dia de faxina, me jogar fora junto com todas as suas tralhas velhas. Ou, quem sabe, num momento de arroxo financeiro, tenha me posto à venda num bazar e repassado por uma bagatela – preço justo.

Não sei por quanto tempo durei em você... Sei que te guardei com muito carinho no melhor lugar de mim. Os anos passaram, coisas mudaram, amigos e amigas vieram, novas paixões... Mas a parte de você que ficou comigo naquela rodoviária esteve sempre guardada. Neste momento da vida, em que nada mais me resta a não ser esperar o inesperado, você – matriz, original – está de volta. Se quiser, se ainda estiver interessada, se a vida boa da capital não tiver feito você esquecer da parte sua que ficou comigo, eu te devolvo a você...


Fernando Lago – 21 de Maio de 2011