21 de abril de 2012

Pegou a avenida e se foi... (segunda parte)




Nem pude me despedir, quando voltei, ela já tinha desaparecido. Pra ter certeza de que ela não fora uma ilusão, um anjo, ou qualquer dessas coisas extraordinárias que costumam aparecer nas estórias de cinema infantil, perguntei pro moço da pipoca se ele tinha visto a moça que conversava comigo havia pouco.

- Olha, ela entrou e saiu rapidinho. Foi embora.

- Embora?

- É, pegou a avenida e se foi.

Pegou a avenida e se foi... Eu poderia iniciar uma poesia ou uma música assim. Ou mesmo um romance. Surpreende? Já vi muitos romances surgirem a partir de uma simples frase. Mas seria um romance triste.
Não mais triste do que seria o de agora, mais de cinco anos depois do ocorrido da fila do fórum, quando ela passava por mim, num requebrar bem brasileiro, e fingia que não me reconhecia, ou pior, não me reconhecia de fato.

Vinha em sentido oposto, passou por mim e continuou caminhando, passo ritmado acompanhado de um toctoc sinfónico do salto na rua semipavimentada, cabelos balançando no compasso do som que os sapatos faziam: toda musical! Mesmo os elementos que não tinham nada a ver com a sonoridade necessária para a música, causavam esse efeito. Os olhos e o cheiro que ela deixava como rastro por onde passava davam uma vontade danada de sair cantando ópera pela rua. Tenho pra mim que ainda que eu não a reconhecesse de fato, faria o que fiz: dei meia volta e segui o rastro do aroma do seu perfume.

Fui parar num barzinho, ela estava sentada num daqueles tamboretões e já tinha pedido um gole de alguma coisa transparente que eu não sabia o que era. Sentei ao seu lado e disse oi. Ela respondeu com uma inclinação rápida de cabeça e continuou bebendo. Eu não sabia muito o que fazer. Ou eu falava alguma coisa ou saía dali. Não podia ficar sentado ao lado dela sem motivos, com essa cara de idiota que a natureza fez o favor de me dar, olhando pra ela calado. Seria estranho, talvez até assustador.

- Coloca uma dose daquilo pra mim – falei apontando pra uma bebida qualquer. A moça me olhou, o balconista também. Amarelei, devia ser alguma coisa muito pesada.

- Melhor não – ri, disfarçando – vou dirigir daqui a pouco. Me traz apenas um conhaque.

Foi por pouco. Onde eu estava com a cabeça? Conhaque e vinho eram as únicas coisas que eu conseguira beber até então.

Evitei olhar muito pra ela, poderia se assustar ou se irritar. Mas estava linda, uma mulher verdadeiramente! Mas como puxar assunto? Talvez se eu dissesse: “você cresceu, hein!” ou “Nossa, você está uma mulher!”... Não, muito “tio”. Eu tinha que dizer algo criativo, algo novo, algo surpreendente...

- Está calor, não é?

Genial! Falar do tempo. Isso sim é inusitado.

- Até que não...

Ótimo. Trocamos algumas palavras. Agora eu não sabia o que falar e o silêncio voltou a reinar.  Mais uma dose, mais uma olhadinha, como estava linda! E me olhava, com expressão intrigada...

- Por que você tá me olhando assim? – perguntei, num ímpeto de coragem.

- Sei lá, parece que eu te conheço... De algum lugar.

- Será? Eu lembraria de uma mulher tão bonita.

- É, acho que também me lembraria do senhor.

Não tentem me entender, amigos. Não me perguntem por que eu não falei que ela estava errada, que ela já tinha me conhecido uma vez e agora não se lembrava mais. E que diabos era aquilo de senhor?

- Será? – foi o que eu disse

- Eu tenho a memória boa.

- Não que eu esteja duvidando disso, mas eu é que não tenho tanta importância assim pra ser lembrado.

Ela riu. Sim, mudara muito, tornara-se mulher. Mas um pedaço da menininha que eu conheci se mostrou naquele sorriso. E de novo eu tive vontade de casar com ela.

- Você tem um sorriso lindo.

- Obrigada. Você é daqui mesmo?

- Sou, estive viajando um tempo, mas voltei, agora...

A conversa estabeleceu-se. Quisera eu que fosse eterna. Talvez a continuação da conversa eterna interrompida pelo fim da fila do fórum. Ela ainda mantinha as convicções, defendia a causa das mulheres e formulava ainda melhor as críticas e as soluções que achava pros problemas.

- Era muito fácil, mas nenhum governo quer!

A conversa foi maravilhosa, como a outra tinha sido. Mas, como vocês bem sabem, uma garrafa de conhaque dura muito menos que uma fila de serviços de fórum. Mal virei para pedir outra e ela já tinha se levantado... Ainda estava na porta quando notei e falei alto:

- Você já vai?

- Já. Foi um prazer te conhecer. Quem sabe a gente se vê por aí de novo.

- Tomara. Foi um prazer te conhecer também.

Caminhei até a porta e acompanhei com os olhos os passos dela se afastando, seu rebolado automático de mulher bonita e os cabelos que se balançavam ritmados. Já não se podia ouvir o toctoc dos sapatos, mas mesmo assim ela era toda música. Música visual. Meus olhos seguiram seu balançado até o momento em que ela, mais uma vez, pegou a avenida e se foi.

Foi a primeira mulher que eu conheci duas vezes. E vivo esperando uma terceira.

Fernando Lago - Abril de 2012 

17 de abril de 2012

Pegou a avenida e se foi... (Primeira parte)




Passou por mim, virou a esquina e nem percebeu quem eu era. Estava linda, ainda mais do que antes. Mudara bastante, tinha mais corpo, as curvas eram mais adultas e o rosto de menina agora transmitia uma forte expressão de dona do mundo. Eu, no entanto, mudei pouco, quase nada além de uns três ou quatro novos fios de cabelo branco que surgiram no alto da minha nuca. Inacreditável que não tenha me reconhecido.

Era adolescente quando nos vimos pela primeira e última vez. Já era bela, mas tinha as pernas finas e os seios mal começavam a arredondar-se. Mas o que me impressionou nela foi a doçura e inteligência com que conversava sobre as coisas diversas que vinham, no um-assunto-puxa-outro que iniciamos naquela calçada. Política, cultura, a situação econômica do país... Ela discorria sobre tudo isso com ligeiríssimos sinais de irritação quando se referia às autoridades competentes de cada área. Chegou a cuspir no chão quando pronunciou o nome do Ministro da Educação. Mas não demorava a voltar à doçura de sempre, apresentando uma solução utópica para o problema, mas admirável para uma adolescente que tinha acabado de sair do ensino fundamental.

Os fervorosos militantes da moralidade moderna me censurarão em pensamento e em palavras, com certeza, mas devo confessar que desejei, naquele instante, casar-me com aquela menininha de quinze anos. Desejei tê-la pra sempre comigo, ouvindo suas histórias e protestos.

Há poucos anos isso não seria um absurdo. Homens de quase trinta casavam-se aos montes com meninas de quinze. Creio que foi esse o pensamento do senhor que vendia pipocas à porta do fórum, quando disse:

- Não vai comprar uma pipoquinha para a sua senhora?

Que me importava a ausência de formas diante daquele sorriso, que ela apresentou tão logo o senhor terminou a frase? Eu que tinha um padrão de beleza tão exigente: curvas, seios, traseiro, agora me rendia totalmente àquele sorriso de menina.

- Não somos casados não, tio – disse ela simpaticíssima ao velho – eu nem tenho idade pra isso!

A fila do fórum andava. Deu vontade de perguntar o que uma garotinha de quinze anos fazia ali, mas achei melhor não saber. Estávamos sentados na calçada enquanto a fila estava parada, agora que ela começava a andar, ficamos automaticamente de pé, sem pensar ou dizer nada, como uma atitude natural dos nossos membros.

- E você não tem namorado? – perguntei

- Eu sou muito nova...

- Muitas meninas de quinze anos namoram. Até mais novas.

- Mas eu não quero.

- Entendo.

- E você?

- Eu o que?

- Namora?

- Não.

- Quando for namorar, não escolhe uma menina muito nova.

- Por quê?

- Porque ela não te entenderia, você é inteligente. Você só ia se decepcionar.

- Mas muitas meninas são inteligentes, olha você, por exemplo.

- O pessoal acha que eu falo demais...

- É, você é tagarelinha mesmo, mas eu adorei você.

- Também gostei de você. Na verdade a maioria dos meus amigos são mais velhos...

- É porque você tem uma inteligência acima da média – ri – você tem um futuro muito promissor, com certeza.

Não gosto de clichês, mas esta foi a única frase que me acudiu naquele momento. Ela riu de novo e eu, mais uma vez, desejei que aquela criaturinha ficasse comigo pra sempre. E é agora que os moralistas hão de me crucificar: desejei tê-la ali mesmo, naquela fila do fórum. Felizmente o abismo entre o desejo e a ação sempre foi suficientemente grande em mim, é o que faz muitos homens serem bons.

- Você é culto – disse ela – isso é raro nessa cidade.

- Não sou culto, apenas reflito algumas coisas.

- É muito bom encontrar alguém pra se ter uma conversa agradável numa fila a essa hora do dia.

- Eu digo o mesmo, espero que possamos nos ver novamente.

- Eu também. Olhe, é a sua vez.

A parte que é, em geral, a mais desejada da fila, naquele instante foi a mais odiada. Naquele momento, eu queria uma fila eterna... 



Fernando Lago - Abril de 2012