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- Já imaginou se você não fosse você?
Vila pousou o copo na mesa. Fitou o amigo sem entender.
- Que história é essa, Dodô?
- Se você acordasse um dia num lugar diferente, com gente diferente, uma vida totalmente diferente... sem saber de nada...
- Mas aí eu continuaria eu! Saberia que era eu, mesmo que os outros dissessem que não! Que babaquice é essa, Dodô? Não andou lendo Kafka demais não?
- Não, não li Kafka!
- Se não é influência kafkiana, só pode ser influência alcoólica! Acho melhor maneirar no uísque, você não tá acostumado!
- Não culpe o álcool pelas minhas loucuras, Vila! – riu o jovem, bêbado inexperiente.
- Você é cheio de maluquices, Dodô!
Silenciaram. Dodô serviu-se de mais um copo de uísque, sob os criteriosos olhos de Vila, que sempre insistia pra que ele bebesse um pouco mais e agora percebia que o amigo não estava preparado para isso.
- E quem garante que eu sou eu e você é você?
- Aaaaah, Dodô! Você pirou de vez!
- Veja. Eu sou eu. Eu garanto que sou eu. Mas e se eu acordar num lugar diferente e todo mundo disser que eu me chamo Astolfo?
- Ué, acho Astolfo um nome bacana...
- Só que meu nome é Dorgival. E sempre atendi por esse nome! Ou pelo apelido tirado dele.
- Então! Você é Dorgival e Dorgival será! Mesmo que te chamem de Astolfo!
- Mas, nesse caso, a vida em que acordei seria do Astolfo e não minha!
- Daí é simples. Você sai da vida do Astolfo e volta pra sua!
- Mas não seria tão fácil. A mulher do Astolfo vai achar que é minha mulher e não vai me deixar ir embora!
Vila deu risada gostosa de bêbado. Com direito a tosse. Tomou mais um gole de uísque e ficou observando o amigo, que fitava a toalha da mesa, vendo sabe-se lá o que, porque a toalha não tinha sequer desenho. De repente, ele levantou a cabeça e disse:
- Mas se eu não souber que sou Dodô e não Astolfo?
- Aí não tem discussão. – disse Vila já impaciente com o devaneio filosófico do amigo – Você vai ser Astolfo e ponto!
- Tem razão – aquiesceu pensativo – tem razão...
Mais silêncio, mais goles. Mais olhares fixos à toalha de desenho ausente.
- Ô, Vila...
- Que é?
- E se eu for o Astolfo e tiver virado Dorgival de ontem pra hoje?
- Chega, Dodô! Vou pedir a conta!
Fernando Lago. Janeiro de 2011