...De tarde, se anoitecer, tudo se acaba
E aí crio asas
E aí elas querem voar”
(Karina Buhr)
Nos primeiros dias,
buscava sempre ocupar a cabeça. Várias coisas, trabalho principalmente.
Começava o dia pensando neste ou naquele documento, nesta ou naquela pasta,
nesta ou naquela duplicada. À rua, cumprimentava as pessoas com ar de gerente
de banco, de dono de importadora, de executive producer, alguém muito ocupado
para lembrar que estava sozinho.
Mas a noite era
terrível, a noite me matava, a noite não me dava a menor trégua. Demorava a
pegar no sono, tentava ler algum livro que já tivesse lido na minha
adolescência, mas não dava: a mocinha tinha a cor dos seus cabelos, ou o seu
sorriso ou as suas posições político-sociais. Não conseguia me prender a
programa nenhum de televisão, mesmo aqueles que não exigiam um mínimo de raciocínio
e atenção. Não havendo mais saída, tentava criar cenas, histórias fantásticas,
assaltos, guerras em países desconhecidos, aventuras extraordinárias que só
tinham uma coisa em comum: não evocavam a sua imagem.
Mas era impossível
imaginar algo mais forte, mais surreal, mais impregnado e presente em mim do
que a sua ausência. Quando desistia de tudo, me entregava à cama e me sentia puro.
Não puro de limpo; puro de vazio. Nada me ajudava a esquecer que estava sem
você. E a lacuna no seu lado da cama só aumentava a sensação.
Vinham os dias de folga
e a coisa piorava. Fazia de tudo pra acordar o mais tarde possível. Logo que
acordava, ia andar na rua, sair daquela casa, assombrada pelo meu próprio
fantasma solitário. E enquanto eu caminhava na Praça Antônio Nogueira, os
periquitos urbanos gralhavam sobre a minha cabeça, parecendo rir de mim dizendo:
“olha, que sujeito imbecil! Não era este mesmo que há pouco andava nesta mesma
praça, sentindo-se o dono do mundo? Que acreditava que tudo era doce e assim
seria pra sempre?” E eu apanhava uma pedra, ameaçava atirar nas aves e percebia
que o guarda municipal me encarava desconfiado.
À noite buscava alguma
festa, algum bar, qualquer coisa que me fizesse ficar na rua até tarde para não
ter que encarar o seu espaço na cama ocupado por nada, me encarando, rindo de
mim e repetindo a ladainha dos periquitos. Chegava em casa cansado, sem sono e
sem imaginação para criar histórias maravilhosas substitutivas à nossa própria,
que de repente era só minha de novo. Não havendo o que imaginar, sua imagem me
invadia, me assombrava, ria, chorava, praticava todas as injustiças e amores do
mundo num espaço de trinta minutos, até a resistência da vontade de chorar ser
vencida pelo sono.
Não éramos casados de
verdade e nem você fez questão de levar nenhum dos meus bens materiais. Não
houve advogados, nem litígios, nem qualquer tipo de processo judicial para
dividirmos o patrimônio. Mas você levou muito mais de mim do que imagina.
Porque você era o meu cofre mais seguro, onde eu guardava tudo que tinha de melhor.
Impossível disfarçar a minha carência dos bens que levou com você.
E fico assim,
imaginando histórias, jogando pedra em pássaros, a vontade de chorar: a sua
ausência faz de mim um menino. Daqueles bem dengosos.
No fim das contas, não
sei o que foi mais prejudicial. Se a minha imaginação do início, achando que
tudo seria eternamente doce, eternamente bonito, eternamente nós, sem que
ninguém desatasse. Ou se a minha falta de imaginação, para tentar me livrar da
sua imagem que, mesmo sem querer me perseguia em cada centímetro de qualquer
estrada em que eu me aventurasse.