29 de dezembro de 2011

Um minuto

 Imagem: Narciso. De Michelangelo Merisi da Caravaggio. 


Eu que me aguente comigo
E com os comigos de mim...
(Álvaro de Campos)

Dê-me um minuto
Para que eu me convença
De que essa imaterialidade nos levará
A algo de real nesta vida

Deixe-me falar comigo
Metido em minha cadeira de canto de sala
E tentar pregar a mim a confiança nas trivialidades
De Deus ou do destino

Crê que não será fácil
Conheço-me muito e pouco
E a um tempo sei que não acreditarei de primeira
Nas minhas próprias palavras

Que dizer-me?
Não tenho o dom da oratória
Que argumentos lançar-me ao rosto?

Não sei ser persuasivo nem comigo mesmo
E tenho pra mim tão pouca consideração
Que provavelmente darei um muxoxo
Com o olhar em outra coisa mais importante
Que eu...

E convencido de que não me convenço
Resignado de que não me agrado
Baixarei os olhos e sairei calado
Ou me direi verdades que já conheço
Ou me atracarei comigo diante dos olhos surpresos
Daqueles que não são eu

Sou imprevisível.

Sei que na minha infância
– períodos de beleza diária
Amava-me como a mim mesmo
E embora brigasse comigo
As pazes já não tardavam

Agora que não sei mais quem sou
Ou o que sou
E ando nas ruas catando fragmentos do que fui um dia
Retalhos do que hei de ser
Agora quem sabe me reconstrua
Se conseguir convencer-me de que valho a pena....

Dezembro de 2011

15 de dezembro de 2011

“E a falta de imaginação me fez lembrar de você...



 Sem Fazer Ideia by Fernando Lago

...De tarde, se anoitecer, tudo se acaba
E aí crio asas
E aí elas querem voar”
(Karina Buhr)


Nos primeiros dias, buscava sempre ocupar a cabeça. Várias coisas, trabalho principalmente. Começava o dia pensando neste ou naquele documento, nesta ou naquela pasta, nesta ou naquela duplicada. À rua, cumprimentava as pessoas com ar de gerente de banco, de dono de importadora, de executive producer, alguém muito ocupado para lembrar que estava sozinho.

Mas a noite era terrível, a noite me matava, a noite não me dava a menor trégua. Demorava a pegar no sono, tentava ler algum livro que já tivesse lido na minha adolescência, mas não dava: a mocinha tinha a cor dos seus cabelos, ou o seu sorriso ou as suas posições político-sociais. Não conseguia me prender a programa nenhum de televisão, mesmo aqueles que não exigiam um mínimo de raciocínio e atenção. Não havendo mais saída, tentava criar cenas, histórias fantásticas, assaltos, guerras em países desconhecidos, aventuras extraordinárias que só tinham uma coisa em comum: não evocavam a sua imagem.


Mas era impossível imaginar algo mais forte, mais surreal, mais impregnado e presente em mim do que a sua ausência. Quando desistia de tudo, me entregava à cama e me sentia puro. Não puro de limpo; puro de vazio. Nada me ajudava a esquecer que estava sem você. E a lacuna no seu lado da cama só aumentava a sensação.

Vinham os dias de folga e a coisa piorava. Fazia de tudo pra acordar o mais tarde possível. Logo que acordava, ia andar na rua, sair daquela casa, assombrada pelo meu próprio fantasma solitário. E enquanto eu caminhava na Praça Antônio Nogueira, os periquitos urbanos gralhavam sobre a minha cabeça, parecendo rir de mim dizendo: “olha, que sujeito imbecil! Não era este mesmo que há pouco andava nesta mesma praça, sentindo-se o dono do mundo? Que acreditava que tudo era doce e assim seria pra sempre?” E eu apanhava uma pedra, ameaçava atirar nas aves e percebia que o guarda municipal me encarava desconfiado.

À noite buscava alguma festa, algum bar, qualquer coisa que me fizesse ficar na rua até tarde para não ter que encarar o seu espaço na cama ocupado por nada, me encarando, rindo de mim e repetindo a ladainha dos periquitos. Chegava em casa cansado, sem sono e sem imaginação para criar histórias maravilhosas substitutivas à nossa própria, que de repente era só minha de novo. Não havendo o que imaginar, sua imagem me invadia, me assombrava, ria, chorava, praticava todas as injustiças e amores do mundo num espaço de trinta minutos, até a resistência da vontade de chorar ser vencida pelo sono.

Não éramos casados de verdade e nem você fez questão de levar nenhum dos meus bens materiais. Não houve advogados, nem litígios, nem qualquer tipo de processo judicial para dividirmos o patrimônio. Mas você levou muito mais de mim do que imagina. Porque você era o meu cofre mais seguro, onde eu guardava tudo que tinha de melhor. Impossível disfarçar a minha carência dos bens que levou com você.

E fico assim, imaginando histórias, jogando pedra em pássaros, a vontade de chorar: a sua ausência faz de mim um menino. Daqueles bem dengosos.

No fim das contas, não sei o que foi mais prejudicial. Se a minha imaginação do início, achando que tudo seria eternamente doce, eternamente bonito, eternamente nós, sem que ninguém desatasse. Ou se a minha falta de imaginação, para tentar me livrar da sua imagem que, mesmo sem querer me perseguia em cada centímetro de qualquer estrada em que eu me aventurasse.


Acho que dá empate...

Fernando Lago – Dezembro de 2011