29 de janeiro de 2011

Ego Sum



- Já imaginou se você não fosse você?

Vila pousou o copo na mesa. Fitou o amigo sem entender.

- Que história é essa, Dodô?

- Se você acordasse um dia num lugar diferente, com gente diferente, uma vida totalmente diferente... sem saber de nada...

- Mas aí eu continuaria eu! Saberia que era eu, mesmo que os outros dissessem que não! Que babaquice é essa, Dodô? Não andou lendo Kafka demais não?

- Não, não li Kafka!

- Se não é influência kafkiana, só pode ser influência alcoólica! Acho melhor maneirar no uísque, você não tá acostumado!

- Não culpe o álcool pelas minhas loucuras, Vila! – riu o jovem, bêbado inexperiente.

- Você é cheio de maluquices, Dodô!

Silenciaram. Dodô serviu-se de mais um copo de uísque, sob os criteriosos olhos de Vila, que sempre insistia pra que ele bebesse um pouco mais e agora percebia que o amigo não estava preparado para isso.

- E quem garante que eu sou eu e você é você?

- Aaaaah, Dodô! Você pirou de vez!

- Veja. Eu sou eu. Eu garanto que sou eu. Mas e se eu acordar num lugar diferente e todo mundo disser que eu me chamo Astolfo?

- Ué, acho Astolfo um nome bacana...

- Só que meu nome é Dorgival. E sempre atendi por esse nome! Ou pelo apelido tirado dele.

- Então! Você é Dorgival e Dorgival será! Mesmo que te chamem de Astolfo!

- Mas, nesse caso, a vida em que acordei seria do Astolfo e não minha!

- Daí é simples. Você sai da vida do Astolfo e volta pra sua!

- Mas não seria tão fácil. A mulher do Astolfo vai achar que é minha mulher e não vai me deixar ir embora!

Vila deu risada gostosa de bêbado. Com direito a tosse. Tomou mais um gole de uísque e ficou observando o amigo, que fitava a toalha da mesa, vendo sabe-se lá o que, porque a toalha não tinha sequer desenho. De repente, ele levantou a cabeça e disse:

- Mas se eu não souber que sou Dodô e não Astolfo?

- Aí não tem discussão. – disse Vila já impaciente com o devaneio filosófico do amigo – Você vai ser Astolfo e ponto!

- Tem razão – aquiesceu pensativo – tem razão...

Mais silêncio, mais goles. Mais olhares fixos à toalha de desenho ausente.

- Ô, Vila...

- Que é?

- E se eu for o Astolfo e tiver virado Dorgival de ontem pra hoje?

- Chega, Dodô! Vou pedir a conta!


Fernando Lago. Janeiro de 2011

2 comentários:

  1. hahahha, eu adorei!
    É bem sua cara o Dorgival... cheio de dúvidas e questionamentos...

    E no fundo, quem tem garantia que é ele próprio?

    Eu não sei... só sei que queria chamar Nanda Lagoa...

    gente doida... a gente vê por aqui!

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  2. hauahauhauahauahauhaua

    Muito bom,Fernando!

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