24 de maio de 2011

Dividendo



Eu me lembro bem. Você estava sentada do meu lado no banquinho da estação rodoviária e olhava para minhas pernas que balançavam impacientes. Calados, porque não havia nada pra falar, ficamos olhando os carros entrando e saindo da estação.

Tudo tinha acontecido muito rápido. De repente você tinha se tornado parte essencial da minha constituição física e psíquica. Era como se fôssemos um, mesmo em lugares diferentes: como se tivéssemos a capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo, um através do outro. E quando eu dizia ao mundo que você era minha, não o fazia por força de expressão: eu realmente acreditava nisso, queria isso, te enxergava assim.

Mas, de repente, você ia embora, e eu entendi que você era livre e que nós não éramos um. Éramos uma soma que, hoje entendo, fora calculada erroneamente.

Levantei e fui buscar um sorvete. Tínhamos chegado cedo demais, ainda faltava muito pro seu ônibus partir. Tomamos o sorvete todo, ainda calados. Volta e meia você tentava rir, pra animar, mas não tinha argumentos pra defender o seu sorriso. Eu continuava quieto, mais frio que o sorvete que tomávamos.

Perguntei pela trocentésima vez se aquilo era mesmo necessário, se não havia nada que eu pudesse fazer para você desistir daquela viagem. Você disse que era a sua carreira, a sua vida... Eu diria que minha carreira era ser seu e que minha vida era você, que sem você ela acabaria... Mas você sabe que eu nunca fui ligado em sentimentalismos exacerbados... Exceto agora, que a o desgaste da vida e o medo da morte me obrigam a ceder às angústias da alma.

 - Um dia eu volto...

Disse isso passando a mão pelo meu rosto. Sinceridade total e visível no ato, mas nenhuma nas palavras. Mesmo você, por mais que tentasse, não demonstrava ter fé nelas. Eu estava te perdendo. E era pra sempre.

Levantei-me nervoso, pondo as mãos nos bolsos da jaqueta e caminhei até a grade que separava o saguão das plataformas de embarque. Você me seguiu e instalou-se do meu lado, quase colada à minha costela, de onde – dizem as escrituras – O Criador teria extraído a mulher. Sem palavras, me abraçou forte, se aconchegando cada vez mais em meus braços. Em poucos instantes éramos um de novo, unificados pelo abraço.

O autofalante anunciou a saída do seu ônibus, mas eu, ao invés de folgar os braços, te apertei mais ainda contra o meu peito, prisioneira do meu abraço.

- O que é isso?

- Por favor, não vá...

- Tenho que ir...

- Fica, não me deixa!

- Desculpa... Eu te amo.

E me desarmou com um beijo, libertando-se pouco a pouco dos meus braços, das minhas mãos, de mim...

Quando você entrou no ônibus, eu não era eu... não totalmente. Me sentia muito você, talvez mais você do que eu. E me vi entrando no ônibus, disfarçado de você: era uma pedaço de mim, me acenando pela janela, para nunca mais...

Não sei por quanto tempo durei em você, talvez anos, talvez meses, semanas, dias... Talvez você me tenha jogado num rio qualquer, na primeira ponte em que o ônibus passou. Talvez tenha me levado na viajem, deixado a um quanto qualquer em seu apartamento novo para, num dia de faxina, me jogar fora junto com todas as suas tralhas velhas. Ou, quem sabe, num momento de arroxo financeiro, tenha me posto à venda num bazar e repassado por uma bagatela – preço justo.

Não sei por quanto tempo durei em você... Sei que te guardei com muito carinho no melhor lugar de mim. Os anos passaram, coisas mudaram, amigos e amigas vieram, novas paixões... Mas a parte de você que ficou comigo naquela rodoviária esteve sempre guardada. Neste momento da vida, em que nada mais me resta a não ser esperar o inesperado, você – matriz, original – está de volta. Se quiser, se ainda estiver interessada, se a vida boa da capital não tiver feito você esquecer da parte sua que ficou comigo, eu te devolvo a você...


Fernando Lago – 21 de Maio de 2011


2 comentários:

  1. Nando...


    Atrevo-me a dizer que esse é teu melhor texto!
    me emocionei!!
    Cheguei essa madrugada do show do teu xará, Nando Reis e pensei na poesia que é respirar, viver, amar, essas coisas todas erradas que a gente faz..

    Te amo tá?

    ResponderExcluir
  2. Simplesmente uma das coisas mais lindas que você já escreveu!
    APAIXONEI!
    Ah, seu lindo! Tenho orgulho de você, Nando... Falo isso de verdade. Pela sensibilidade e talento. Cê sabe das coisas, moço.

    ResponderExcluir

Não alimente o Fantasma do Silêncio. Expresse-se.