Nem pude me despedir,
quando voltei, ela já tinha desaparecido. Pra ter certeza de que ela não fora
uma ilusão, um anjo, ou qualquer dessas coisas extraordinárias que costumam
aparecer nas estórias de cinema infantil, perguntei pro moço da pipoca se ele
tinha visto a moça que conversava comigo havia pouco.
- Olha, ela entrou e
saiu rapidinho. Foi embora.
- Embora?
- É, pegou a avenida e
se foi.
Pegou a avenida e se
foi... Eu poderia iniciar uma poesia ou uma música assim. Ou mesmo um romance.
Surpreende? Já vi muitos romances surgirem a partir de uma simples frase. Mas
seria um romance triste.
Não mais triste do que seria
o de agora, mais de cinco anos depois do ocorrido da fila do fórum, quando ela
passava por mim, num requebrar bem brasileiro, e fingia que não me reconhecia,
ou pior, não me reconhecia de fato.
Vinha em sentido
oposto, passou por mim e continuou caminhando, passo ritmado acompanhado de um toctoc sinfónico do salto na rua semipavimentada,
cabelos balançando no compasso do som que os sapatos faziam: toda musical!
Mesmo os elementos que não tinham nada a ver com a sonoridade necessária para a
música, causavam esse efeito. Os olhos e o cheiro que ela deixava como rastro
por onde passava davam uma vontade danada de sair cantando ópera pela rua.
Tenho pra mim que ainda que eu não a reconhecesse de fato, faria o que fiz: dei
meia volta e segui o rastro do aroma do seu perfume.
Fui parar num barzinho,
ela estava sentada num daqueles tamboretões e já tinha pedido um gole de alguma
coisa transparente que eu não sabia o que era. Sentei ao seu lado e disse oi.
Ela respondeu com uma inclinação rápida de cabeça e continuou bebendo. Eu não
sabia muito o que fazer. Ou eu falava alguma coisa ou saía dali. Não podia
ficar sentado ao lado dela sem motivos, com essa cara de idiota que a natureza
fez o favor de me dar, olhando pra ela calado. Seria estranho, talvez até
assustador.
- Coloca uma dose
daquilo pra mim – falei apontando pra uma bebida qualquer. A moça me olhou, o
balconista também. Amarelei, devia ser alguma coisa muito pesada.
- Melhor não – ri,
disfarçando – vou dirigir daqui a pouco. Me traz apenas um conhaque.
Foi por pouco. Onde eu
estava com a cabeça? Conhaque e vinho eram as únicas coisas que eu conseguira
beber até então.
Evitei olhar muito pra
ela, poderia se assustar ou se irritar. Mas estava linda, uma mulher
verdadeiramente! Mas como puxar assunto? Talvez se eu dissesse: “você cresceu,
hein!” ou “Nossa, você está uma mulher!”... Não, muito “tio”. Eu tinha que
dizer algo criativo, algo novo, algo surpreendente...
- Está calor, não é?
Genial! Falar do tempo.
Isso sim é inusitado.
- Até que não...
Ótimo. Trocamos algumas
palavras. Agora eu não sabia o que falar e o silêncio voltou a reinar. Mais uma dose, mais uma olhadinha, como
estava linda! E me olhava, com expressão intrigada...
- Por que você tá me
olhando assim? – perguntei, num ímpeto de coragem.
- Sei lá, parece que eu
te conheço... De algum lugar.
- Será? Eu lembraria de
uma mulher tão bonita.
- É, acho que também me
lembraria do senhor.
Não tentem me entender,
amigos. Não me perguntem por que eu não falei que ela estava errada, que ela já
tinha me conhecido uma vez e agora não se lembrava mais. E que diabos era
aquilo de senhor?
- Será? – foi o que eu
disse
- Eu tenho a memória
boa.
- Não que eu esteja
duvidando disso, mas eu é que não tenho tanta importância assim pra ser
lembrado.
Ela riu. Sim, mudara
muito, tornara-se mulher. Mas um pedaço da menininha que eu conheci se mostrou
naquele sorriso. E de novo eu tive vontade de casar com ela.
- Você tem um sorriso
lindo.
- Obrigada. Você é
daqui mesmo?
- Sou, estive viajando
um tempo, mas voltei, agora...
A conversa
estabeleceu-se. Quisera eu que fosse eterna. Talvez a continuação da conversa
eterna interrompida pelo fim da fila do fórum. Ela ainda mantinha as
convicções, defendia a causa das mulheres e formulava ainda melhor as críticas
e as soluções que achava pros problemas.
- Era muito fácil, mas
nenhum governo quer!
A conversa foi
maravilhosa, como a outra tinha sido. Mas, como vocês bem sabem, uma garrafa de
conhaque dura muito menos que uma fila de serviços de fórum. Mal virei para
pedir outra e ela já tinha se levantado... Ainda estava na porta quando notei e
falei alto:
- Você já vai?
- Já. Foi um prazer te
conhecer. Quem sabe a gente se vê por aí de novo.
- Tomara. Foi um prazer
te conhecer também.
Caminhei até a porta e
acompanhei com os olhos os passos dela se afastando, seu rebolado automático de
mulher bonita e os cabelos que se balançavam ritmados. Já não se podia ouvir o
toctoc dos sapatos, mas mesmo assim ela era toda música. Música visual. Meus
olhos seguiram seu balançado até o momento em que ela, mais uma vez, pegou a
avenida e se foi.
Foi a primeira mulher
que eu conheci duas vezes. E vivo esperando uma terceira.
Fernando Lago - Abril de 2012